Memória Apagada e Reescrita com Sangue

Extraído de “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell.

CAPÍTULO VII

Aquele inverno foi horrível. Às tempestades seguiram-se o granizo e as nevadas, depois o gelo, que somente se desfez em meados de fevereiro. Os bichos fizeram todo o possível na reconstrução do moinho de vento, conscientes de que o mundo tinha os olhos sobre eles e de que os invejosos seres humanos vibrariam de contentamento se o moinho não fosse concluído a tempo.

Apesar de tudo, os humanos recusaram-se a crer que Bola-de-Neve tivesse destruído o moinho de vento: afirmavam que as paredes caíram porque eram finas demais. Os animais sabiam não ser essa a causa. Mesmo assim, deliberaram desta vez construir as paredes com noventa centímetros de largura, ao invés de quarenta e cinco, como inicialmente, o que exigia muito mais pedra. Durante longo tempo a pedreira esteve coberta de neve e foi impossível fazer qualquer coisa. Algum progresso se conseguiu depois, no tempo gelado e seco que se seguiu, mas foi um trabalho cruel, e os animais já não o realizavam com a mesma esperança de antes. Andavam sempre com frio e, normalmente, com fome. Somente Sansão e Quitéria nunca desanimavam. Garganta fazia excelentes discursos sobre a alegria e a dignidade do trabalho, mas os animais encontravam maior inspiração na força de Sansão e no seu indefectível brado “Trabalharei mais ainda!”

Em janeiro, a comida diminuiu. A ração de milho foi drasticamente reduzida e anunciou-se que uma ração extra de batata seria entregue em seu lugar. Descobriu-se então que a maior parte da colheita de batatas estava congelada nas pilhas, não suficientemente protegidas. Moles e descoradas, poucas continuavam comíveis. Durante dias seguidos, os bichos não tiveram senão palha e beterraba pare comer. O espectro da fome surgia à sua frente.

Era imprescindível ocultar esse fato ao restante do mundo. Encorajados pelo colapso do moinho de vento, os humanos andavam renovando mentiras sobre a Granja dos Bichos. Mais uma vez se dizia que os bichos morriam de fome e doenças, que brigavam continuamente entre si e que haviam descambado para o canibalismo e o infanticídio. Napoleão bem sabia dos maus resultados que poderiam advir, caso a verdadeira situação alimentar da granja fosse conhecida, e resolveu utilizar o Sr. Whymper para divulgar uma impressão contrária. Até então, os animais tinham tido muito pouco ou nenhum contato com Whymper, em suas visitas semanais: agora, entretanto, alguns bichos selecionados, principalmente ovelhas, foram instruídos para comentarem, casualmente, mas de forma bem audível, o fato de terem sido aumentadas as rações. Em complemento, Napoleão deu ordens para que as tulhas do depósito, que estavam quase vazias, fossem recheadas de areia quase até a boca, depois completadas com cereais e farinha. A um pretexto qualquer Whymper foi conduzido através do depósito e pôde dar uma olhadela nas tulhas. Foi enganado e continuou a dizer lá fora que, absolutamente, não havia falta de alimento na Granja dos Bichos.

Não obstante, no fim de janeiro, tornou-se positiva a necessidade de conseguir-se mais cereais em algum lugar. Naqueles dias Napoleão raramente apareceu em público, passando o tempo todo no casarão, guardado por um cão mal-encarado em cada porta. Quando surgiu outra vez, foi de maneira cerimoniosa, com uma escolta de seis cachorros que o cercavam de perto e rosnavam caso alguém se achegasse demais. Freqüentemente não aparecia, nem sequer aos domingos de manhã, enviando suas ordens por intermédio de outro porco, de preferência Garganta.

Certa manhã de domingo, Garganta anunciou que as galinhas, que recentemente haviam começado a pôr, deveriam entregar-lhe seus ovos, pois Napoleão assinara, por intermédio de Whymper, um contrato de fornecimento de quatrocentos ovos por semana. O preço destes pagaria, em cereais e farinha, o bastante para manter a granja até que chegasse o verão e as condições do tempo melhorassem.

Ao ouvirem isso, as galinhas responderam com um terrível cacarejo. Já haviam sido alertadas sobre essa possibilidade, mas não pensavam que viesse a tornar-se realidade. Como havia pouco — preparavam suas ninhadas de ovos para a chocagem da primavera, protestaram dizendo que tomar-lhes os ovos, agora, era um crime. Pela primeira vez, desde a expulsão de Jones, aconteceu algo parecido com uma rebelião. Lideradas por três jovens frangas Minorca, as galinhas realizaram uma ação visando a contrariar os desejos de Napoleão. O método usado foi voar para os caibros do telhado é dali por os ovos, que vinham despedaçar-se no chão. Napoleão agiu rápida e implacavelmente. Cortou a ração das galinhas e decretou que o bicho que fosse apanhado dando a elas um grão sequer de alimento seria condenado à morte. Os cachorros fiscalizavam a execução da ordem. As galinhas resistiram por cinco dias, depois capitu1aram e voltaram para os ninhos. Nove haviam morrido. Seus corpos foram enterrados no pomar e, segundo se disse, a causa da morte fora coccidiose. Whynper nada ouviu sobre esse caso, e os ovos foram entregues pontualmente, vindo um caminhão semanalmente buscá-los.

Entrementes, não se falava mais em Bola-de-Neve. Havia rumores de que estaria homiziado em uma das granjas vizinhas, Foxwood ou Pinchfield. Nessa época, Napoleão andava em termos ligeiramente melhores com os outros granjeiros É que havia no pátio várias pilhas de madeira, feitas dez anos antes, por ocasião da derrubada de um bosque de faias. Como a madeira já estava bem seca, Whymper aconselhara Napoleão a vendê-la, e tanto Pilkington como Frederick desejavam comprá-la. Napoleão hesitava entre os dois, sem decidir-se. Notou-se que toda vez que parecia ter chegado a um acordo com Frederick, surgia o boato de que Bola-de-Neve estava escondido em Foxwood, ao passo que, quando se inclinava para Pilkington, Bola-de-Neve deveria andar em Pinchfield.

Subitamente, no início da primavera, descobriu-se um fato alarmante. Bola-de-Neve estava freqüentando a granja à noite, secretamente! Os bichos ficaram tão preocupados que mal podiam dormir em seus estábulos. Todas as noites, dizia-se, ele se esgueirava nas sombras e perpetrava um sem número de maldades Roubava milho, entornava baldes de leite, quebrava ovos, esmagava os viveiros de sementes e roía o córtex das árvores frutíferas. Sempre que algo errado aparecia, o culpado era Bola-de-Neve. Uma janela quebrada, um dreno entupido, e alguém com certeza diria que Bola-de-Neve viera à noite e fizera aquilo; quando se perdeu a chave do depósito, toda a granja se convenceu de que Bola-de-Neve a jogara no fundo do poço. Interessante foi continuarem a acreditar, mesmo depois que a chave perdida foi encontrada sob um saco de farinha. As vacas declararam unanimemente que Bola-de-Neve entrara em suas baias e as havia ordenhado durante o sono. Os ratos, por incomodarem muito durante o inverno, foram taxados de aliados de Bola-de-Neve.

Napoleão decretou uma ampla investigação sobre as atividades de Bola-de-Neve. Com seus cachorros em posição de alerta, saiu e fez uma cuidadosa inspeção nos galpões da fazenda, com os outros animais a segui-lo a uma distância respeitosa. A pequenos intervalos, Napoleão parava e farejava o chão em busca de sinais de Bola-de-Neve que, segundo disse, podia perceber pelo faro. Cheirou cada canto, no celeiro, no estábulo, nos galinheiros, na horta, encontrando vestígios de Bola-de-Neve em quase toda parte. Invariavelmente encostava o focinho no chão, puxava algumas cheiradas profundas e exclamava numa voz terrível: “Bola-de-Neve! Andou por aqui! Sinto perfeitamente o cheiro!”. E, à palavra “Bola-de-Neve”, a cachorrada soltava grunhidos sanguinários, pondo os dentes à mostra.

Os animais andavam aterrorizados. Parecia-lhes que Bola-de-Neve era uma espécie de entidade invisível, impregnando o ar à sua volta e ameaçando-os com todas as espécies de perigos. Certa tarde, Garganta reuniu-os e, com uma expressão alarmada, disse-lhes ter várias notícias para dar.

— Camaradas — gritou, fazendo trejeitos nervosos — descobrimos uma coisa pavorosa. Bola-de-Neve vendeu-se a Frederick, da Granja Pinchfield, que neste mesmo instante está planejando atacar-nos e tomar nossa granja! Bola-de-Neve será o guia, quando o ataque começar. Mas ainda há pior. Nós pensávamos que a rebelião de Bola-de-Neve for a causada por sua vaidade e ambição. Pois estávamos enganados, camaradas. Sabeis qual foi a verdadeira razão? Bola-de-Neve era aliado de Jones desde o início! Foi, o tempo todo, agente de Jones. Tudo isso está comprovado em documentos que deixou e que só agora descobrimos. Para mim isso explica muita coisa, camaradas. Pois não vimos, com os nossos próprios olhos, a maneira como ele tentou — felizmente sem conseguir — fazer que fôssemos derrotados e destruídos na Batalha do Estábulo?

Os bichos ouviam estupefatos. Isto era um crime muitíssimo maior do que ter destruído o moinho de vento. Mas alguns minutos se passaram até eles compreenderem a completa significação de tudo aquilo. Todos se lembravam, ou julgavam lembrar-se, de terem visto Bola-de-Neve carregando à frente, na Batalha do Estábulo, de como ele os encorajava e incitava a cada instante, não titubeando um só segundo quando as balas de Jones rasgaram-lhe o dorso. Inicialmente foi difícil entender de que maneira isso combinava com estar do lado de Jones. Até Sansão, que raras vezes fazia perguntas, ficou confuso. Deitou-se, enfiou as patas dianteiras debaixo do corpanzil, fechou os olhos e, com grande esforço, tentou reunir os pensamentos.

— Não acredito — disse. — Bola-de-Neve lutou bravamente na Batalha do Estábulo. Isso eu vi com meus próprios olhos. Pois nós até não lhe demos uma “Herói Animal, Primeira Classe”, logo depois?

— Esse foi o nosso erro, camaradas. Pois agora sabemos, e está tudo escrito nos documentos encontrados que, na realidade, ele tentava conduzir-nos à desgraça.

— Mas ele foi ferido — insistiu Sansão. — Todos o vimos ensangüentado.

— Isso era parte do trato — gritou Garganta. — O tiro de Jones pegou apenas de raspão. Eu poderia mostrar isso a vocês, escrito com a letra dele mesmo, se vocês soubessem ler. A combinação era Bola-de-Neve dar o sinal de retirada no momento crítico e abandonar o terreno ao inimigo. E ele quase conseguiu isso, posso dizer até que teria conseguido, se não fosse o nosso heróico Líder, o Camarada Napoleão. Lembram-se de que, bem no momento em que Jones e seus homens atingiram o pátio, Bola-de-Neve, de repente, virou-se e fugiu, seguido de muitos animais? E não foi nesse exato momento, quando já nos dominava o pânico e tudo parecia perdido, que o Camarada Napoleão surgiu proferindo o brado de “Morte à Humanidade!” e fincou os dentes na perna de Jones? Por certo vocês se lembram disso, não é, camaradas? — exclamou Garganta, dando pulinhos de um lado para outro.

Bem, agora que Garganta descrevera a cena tão vividamente, parecia aos animais que de fato se lembravam. Pelo menos lembravam-se de, no momento crítico da Batalha, Bola-de-Neve voltar-se para fugir. Sansão, porém, ainda permanecia um tanto contrafeito.

— Não acredito que Bola-de-Neve fosse um traidor desde o começo — disse por fim. — O que fez depois, é outra coisa. Eu ainda acho que na Batalha do Estábulo ele foi um bom camarada.

— Nosso Líder, o Camarada Napoleão — disse — Garganta, falando devagar e com firmeza — declarou categoricamente, categoricamente, camaradas!, que Bola-de-Neve era agente de Jones desde o início…sim, desde o instante mesmo em que imaginamos a Revolução.

— Ah, isso é diferente! — respondeu Sansão — Se o Camarada Napoleão diz, deve ter razão.

— Hum, esse é o verdadeiro espírito, camarada! — exclamou Garganta. Porém, todos notaram a olhadela feia que deu para Sansão, com seus olhos matreiros.

Depois virou-se para ir embora, mas se deteve e acrescentou de maneira impressionante:

— Alerto a todos os animais desta fazenda para que mantenham os olhos bem abertos. Temos motivos para pensar que alguns dos agentes secretos de Bola-de-Neve estão ocultos entre nós neste momento! Quatro dias depois, à tardinha, Napoleão mandou que os bichos se reunissem no pátio. Quando todos haviam comparecido, Napoleão emergiu do Casarão, ostentando ambas as suas medalhas (pois recentemente conferira a si próprio a “Herói Animal — Primeira Classe” e a “Herói Animal, Segunda Classe”), com seus nove cachorros fazendo demonstrações à sua, volta e soltando rosnados que causavam calafrios nas espinhas dos animais. Estes se encolheram silenciosos em seus lugares, parecendo pressentir que algo horrível estava por acontecer.

Napoleão parou e dirigiu um olhar severo à assistência; depois deu um guincho estridente. Imediatamente os cachorros avançaram, pegando quatro porcos pelas orelhas e arrastando-os a guinchar, de dor e terror, até os pés de Napoleão. As orelhas dos porcos sangraram e o gosto do sangue pareceu enlouquecer os cachorros. Para surpresa de todos, três deles lançaram-se sobre Sansão. Este reagiu com um pataço que pegou um dos cachorros ainda no ar, jogando-o ao solo. O cachorro ganiu pedindo compaixão, e os outros dois fugiram, com o rabo entre as pernas. Sansão olhou para Napoleão para saber se devia liquidar o cachorro ou deixá-lo ir. Napoleão pareceu mudar de idéia e rispidamente ordenou a Sansão que o soltasse, e ele ergueu a pata, deixando ir o cachorro ferido, uivando.

O tumulto amainou. Os quatro porcos esperavam trêmulos, com a culpa desenhada em cada linha do semblante. Então Napoleão concitou-os a confessar seus crimes. Eram os mesmos que haviam protestado quando Napoleão abolira as Reuniões dominicais. Sem mais demora, confessaram ter realizado contatos secretos com Bola-de-Neve desde o dia de sua expulsão e haver colaborado com ele na destruição do moinho de vento; confessaram ainda que também haviam-se comprometido com ele a entregar a Granja dos Bichos a Frederick. Acrescentaram que Bola-de-Neve havia admitido, na presença deles, ter sido durante muitos anos agente secreto de Jones. Ao fim da confissão, os cachorros estraçalharam-lhes a garganta e, com voz terrível, Napoleão perguntou se algum outro animal tinha qualquer coisa a confessar.

As três galinhas que haviam liderado a tentativa de reação a respeito dos ovos aproximaram-se e declararam que Bola-de-Neve lhes aparecera em sonho, instigando-as a desobedecerem as ordens de Napoleão. Também foram degoladas. Aí veio um ganso e confessou ter escondido seis espigas de milho durante a colheita do ano anterior, comendo-as depois, à noite. Uma ovelha confessou ter urinado no açude por insistência, disse, de Bola-de-Neve — e duas outras ovelhas confessaram ter assassinado um velho bode, seguidor especialmente devotado de Napoleão, fazendo-o correr em volta de uma fogueira quando ele, coitado, estava com um ataque de asma. Foram mortas ali mesmo. E assim prosseguiu a sessão de confissões e execuções, até haver um montão de cadáveres aos pés de Napoleão e no ar um pesado cheiro da sangue, coisa que não sucedia desde a expulsão de Jones.

Quando tudo acabou, os bichos sobreviventes, com exceção dos porcos e dos cachorros, retiraram-se furtivamente, trêmulos e angustiados. Não sabiam o que era mais chocante, se a traição dos animais que se haviam acumpliciado com Bola-de-Neve, ou se a cruel repressão recém-presenciada. Nos velhos tempos eram freqüentes as cenas sangrentas, igualmente horripilantes, entretanto agora lhes pareciam ainda piores, uma vez que ocorriam entre eles mesmos. Desde o dia em que Jones deixara a fazenda, até aquele dia, nenhum animal matara outro animal. Nem sequer um rato fora morto. Haviam percorrido o caminho até a colina do moinho inacabado e de comum acordo deitaram-se, procurando aquecer uns aos outros — Quitéria, Maricota, Benjamim, as vacas, as ovelhas e todo o bando de gansos e galinhas, todos eles, afinal, exceto o gato, que desaparecera de repente, ao chegar a ordem de Napoleão para a reunião. Durante algum tempo ninguém falou. Somente Sansão permanecia de pé. Andava, impaciente, de um lado para o outro, batendo com a longa cauda negra aos flancos e proferindo, de vez em quando, um gemido de estupefação. Finalmente disse:

— Não entendo. Nunca pensei que coisas assim pudessem acontecer em nossa granja. Deve ser o resultado de alguma falha nossa. A solução que vejo é trabalhar mais ainda. Daqui por diante, vou levantar uma hora mais cedo.

E saiu no seu trote pesadão, rumo à pedreira. Lá chegando, juntou dois grandes montes de pedras e arrastou-os até o moinho de vento, antes de recolher-se para dormir.

Os bichos se amontoaram em volta de Quitéria, em silêncio. O outeiro onde estavam dava-lhes uma ampla vista da região. A maior parte da Granja dos Bichos abria-se ante eles — a grande pastagem que se estendia até a estrada, o campo de feno, o bosque, o açude, os campos arados onde estava o trigo novo, ainda fino e verde, e os telhados vermelhos do casario da granja, onde a fumaça saía das chaminés. Era, uma tarde clara de primavera. A grama e a sebe em brotação douravam-se aos raios horizontais do sol. Jamais a granja lhes parecera — e com uma espécie de surpresa lembraram-se de que tudo era deles, cada centímetro era de sua propriedade — um lugar tão agradável. Olhando pela encosta da colina, Quitéria ficou com os olhos cheios de água. Se pudesse exprimir seus pensamentos, diria que aquilo não era bem o que pretendiam ao se lançarem, anos atrás, ao trabalho de derrubar o gênero humano. Aquelas cenas de terror e sangue não eram as que previra naquela noite em que o velho Major, pela primeira vez, os instigara à rebelião. Se ela própria pudesse imaginar o futuro, veria uma sociedade de animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada qual trabalhando de acordo com sua capacidade, os mais fortes protegendo os mais fracos, como ela protegera aquela ninhada de patinhos na noite do discurso do Major. Em vez disso — não podia compreender por que — haviam chegado a uma época em que ninguém ousava dizer o que pensava, em que os cachorros rosnantes e malignos perambulavam por toda parte e a gente era obrigada a ver camaradas feitos em pedaços após confessarem os crimes mais horríveis. Não tinha em mente idéias de rebelião ou desobediência. Sabia que, por piores que fossem, as coisas estavam muito melhores do que nos tempos de Jones e que antes de mais nada era preciso evitar o retorno dos seres humanos. Acontecesse o que acontecesse, ela permaneceria fiel, trabalharia bastante, cumpriria as ordens recebidas e aceitaria a liderança de Napoleão. Mesmo assim, não fora por aquilo que ela e todos os animais haviam esperado e trabalhado. Não fora para aquilo que haviam construído o moinho de vento e enfrentado as balas da espingarda de Jones. Tais eram seus pensamentos, embora ela não tivesse palavras para expressá-los.

Por fim, sentindo que assim substituiria as palavras que não conseguia encontrar, começou a cantar Bichos da Inglaterra. Os outros animais, sentados à sua volta, foram aderindo e cantaram a canção três vezes — bem na melodia, mas lenta e tristemente como nunca haviam cantado antes.

Mal haviam terminado de cantar a terceira vez, apareceu Garganta, seguido de dois cachorros, com ar de quem tem coisa muito importante a dizer. Anunciou que, por decreto especial do Camarada Napoleão, a canção Bichos da Inglaterra fora abolida. Daquele momento em diante, era proibido cantá-la.

Os animais foram colhidos de surpresa.

— Por quê? — exclamou Maricota.

— Não há necessidade, camaradas — respondeu Garganta inflexivelmente. — Bichos da Inglaterra era a canção da Revolução. Mas a Revolução agora está concluída. A execução dos traidores, hoje à tarde, foi o ato final. Em Bichos da Inglaterra expressávamos nosso anseio por uma sociedade melhor, no porvir. Ora, essa sociedade já foi instituída. Evidentemente, o hino não tem mais valor algum.

Mesmo amedrontados como estavam, alguns animais poderiam ter protestado, se nesse momento as ovelhas não enveredassem pelo “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”, que durou vários minutos, pondo fim à discussão.

E, assim, não mais se ouviu Bichos da Inglaterra. Em seu lugar, Mínimo, o poeta, compusera outra canção que começava dizendo:

Granja dos Bichos,

Granja dos Bichos,

Jamais te farão mal!

e isto passou a ser cantado todos os domingos após o hasteamento da bandeira. Mas, de certa maneira, nem a letra nem a música jamais pareceram, aos animais, como as de Bichos da Inglaterra.

O ESCÂNDALO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

“Watergate. O mesmo cenário que na Disneylândia (efeito de imaginário escondendo que não há mais realidade além como aquém dos limites do perímetro artificial): aqui efeito de escândalo escondendo que não há qualquer diferença entre os factos e sua denúncia (métodos idênticos por parte dos homens da CIA e dos jornalistas do Washington Post). A mesma operação, tendente a regenerar através do escândalo um princípio moral e político, através do imaginário um princípio de realidade em dissipação.

A denúncia do escândalo é sempre uma homenagem que se rende à lei. E Watergate conseguiu sobretudo impor a ideia de que Watergate era um escândalo – neste sentido foi uma operação de intoxicação prodigiosa. Uma boa dose de reinjecção de moral política à escala mundial. Poder-se-ia dizer, como Bordieu: “O que é próprio à toda correlação de forças é dissimular-se enquanto tal e não assumir toda a sua força senão porque se dissimula enquanto tal”, entendendo-o assim: o capital, imoral e sem escrúpulos, só pode exercer-se por detrás de uma superestrutura moral, e quem quer que seja que regenere esta moralidade pública (pela indignação, pela denúncia, etc) trabalha espontaneamente pela ordem do capital. Foi esse o caso dos jornalistas do Washington Post.

Mas isto não seria ainda senão a fórmula da ideologia e, quando Bordieu a enuncia, subentende a “correlação de forças” como verdade da dominação capitalista e denuncia esta mesma correlação de forças como escândalo – está, pois, na mesma posição determinista e moralista dos jornalistas do Washington Post. Faz o mesmo trabalho de resgate e de relançamento de uma ordem moral, de uma ordem de verdade em que se engendra a verdadeira violência simbólica da ordem social, bem para além de todas as correlações de força que não são mais que a sua configuração movente e indiferente na consciência moral e política dos homens. Tudo o que o capital nos pede é que o recebamos como tradicional ou que o combatamos em nome da moralidade. Pois é a mesma coisa, o que pode ver-se sob uma ou outra forma: outrora tentava-se dissimular um escândalo – hoje tenta-se esconder que ele não existe. Watergate não é um escândalo, é o que é preciso dizer a todo custo, pois é o que todos tentam esconder, mascarando esta dissimulação um aprofundamento da moralidade, do pânico moral, à medida que nos aproximamos da en(cena)ção primitiva do capital: a sua crueldade instantânea, a sua ferocidade incompreensível, a sua imoralidade fundamental – é isso que é escandaloso, inaceitável para o sistema de equivalência moral e econômica que constitui o axioma do pensamento de esquerda, desde a teoria das Luzes até o comunismo. Imputa-se esse pensamento do contrato ao capital mas esta está-se absolutamente nas tintas para ele – é uma empresa monstruosa, sem princípios, um ponto, nada mais. É o pensamento “esclarecido” que procura controlá-lo impondo-lhe regras. E toda a recriminação que é considerada como pensamento revolucionário volta hoje a incriminar o capital por não respeitar as regras do jogo. “O poder é injusto, a sua justiçã é uma justiça de classe, o capital explora-nos, etc” – como se o capital estivesse ligado por um contrato à sociedade que rege. É a esquerda que estente ao capital o espelho da equivalência, esperando que ele vá virar-se contra este, agarrar-se a esta fantasmagoria do contrato social e cumprir as suas obrigações para com toda a sociedade (ao mesmo tempo não há necessidade de revolução: basta que o capital se submeta à fórmula tradicional da troca). O capital, esse, nunca esteve ligado por contrato a esta sociedade que domina. É uma feitiçaria da relação social, é um desafio à sociedade e deve ser-lhe dada uma resposta em conformidade. Não é um escândalo a denunciar segundo a racionalidade moral ou econômica, é um desafio a aceitar segundo a regra simbólica.”

(Jean Baudrillard, O Encantamento Político, In: Simulacros e Simulações, 1981).

Leonardo Boff diz que apoiadores de Marcha são “antibrasileiros”

Retirado do Sitio eletrônico O Povo

Para o teólogo Leonardo Boff, grupos que buscam reviver manifestação de 1964 e defendem intervenção militar no governo do Brasil não sabem o que querem. Além disso, eles mostrariam desprezo às vítimas da ditadura

O teólogo e escritor Leonardo Boff, conhecido pela defesa às causas sociais e aos direitos humanos, criticou, ontem, os grupos que se mobilizam para promover uma reedição da Marcha da Família com Deus, realizada em 1964. “Esses grupos não sabem o que querem, eles mostram um desprezo das vítimas (da ditadura militar) e não pensam naqueles que podiam ser seus filhos, suas filhas, seus maridos que foram desaparecidos e torturados”, disse Boff.

O filósofo foi palestrante convidado do VII Congresso Estadual dos Fazendários (Conefaz), ontem, em Fortaleza. Durante o evento, Boff apresentou questões as quais considera fundamentais para a sociedade, como a sustentabilidade e a cidadania. Ao O POVO, ele criticou a estrutura da democracia no Brasil e defendeu a necessidade de uma reforma política, direcionada pelos reclames das manifestações de ruas de 2013.

“Acho que, no Brasil, temos de refundar a democracia porque é uma democracia de baixíssima intensidade política, na direção do reclame que vem das bases, das manifestações do ano passado, que é de uma democracia participativa, social, que atenda às demandas sociais”, ressaltou.

“Antibrasileiros”

Sobre os mobilizadores da Marcha da Família com Deus, Boff disse serem “as pessoas mais antibrasileiras que existem, são inumanas, cruéis e sem piedade”. A manifestação, programada para cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, no próximo sábado, busca reviver a marcha de mesmo nome realizada em São Paulo, em 19 de março de 1964, quando milhares de pessoas foram às ruas contra o que consideravam a ameaça comunista do governo João Goulart. Cinquenta anos depois, a marcha é considerada como um dos motes para o golpe militar de 1964.

“Elas estão propiciando a volta do crime, contra a democracia, contra a humanidade. (…) Elas estão defendendo não a democracia, nem a liberdade, nem a família, estão defendendo os seus privilégios”, pontuou Boff. Apesar das críticas, ela disse acreditar que haja esclarecimento dos brasileiros para não apoiarem a ação, e que os próprios militares não têm interesse, nem estrutura para uma intervenção militar – proposta defendida por grupos da atual marcha.

Na página do Facebook que promove o evento, consta a descrição de que a manifestação tem o objetivo de alertar o povo brasileiro sobre possível “golpe comunista”. Apesar de defender a intervenção militar, o grupo afirma que a ação é diferente de uma ditadura militar.

Safatle: “Há horas que a correlação de forças é contra você, mas você faz”

Filósofo aborda manifestações e a resposta política para elas, entre outros temas

Antonio David e Artur Scavoni
Especial para o Brasil de Fato

Autor de A esquerda que não teme dizer seu nome, o professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle tem sido um dos mais notáveis intelectuais a discutir as questões filosóficas e morais da esquerda mundial.

Na entrevista a seguir, além de avaliar as manifestações de junho do ano passado, o filósofo discorre sobre o esgotamento do modelo de desenvolvimento dos governos Lula e Dilma e as perspectivas da esquerda brasileira.

Brasil de Fato – Em artigo recente, você afirma que as exigências populares de uma “outra política” expressas em junho “pararam na lata de lixo mais próxima”, e argumenta: “Depois de apresentar com uma mão um projeto de Assembleia Constituinte para a reforma política e retirá-lo com a outra, o governo prometera pressionar o Congresso Nacional para debater as propostas. O resultado foi cosmético, se quisermos ter um mínimo de generosidade”. Contudo, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, tratando deste mesmo assunto, apresenta um ponto de vista diferente. Diz ele: “As ruas emitiram um sinal, e Dilma emitiu um outro sinal em resposta num sentido de ampliação da democracia como nunca havia acontecido. Os setores da direita imediatamente souberam ler o que estava em jogo, e os manifestantes não souberam”. Como você encara a resposta das ruas à proposta de Assembleia Constituinte?

Vladimir Safatle – Acho que tem um problema aí, porque é impossível ter resposta para um projeto que foi retirado 48 horas depois de ter sido apresentado. Eu de fato não compartilho dessa análise, porque o governo não deu sequer tempo para que a sociedade pudesse emitir uma resposta. O que aconteceu foi que, num momento de sanidade, ficou claro que nós estávamos numa espécie de crise de representatividade profunda, que exigia o que eu diria caminhar em direção ao grau zero da representação, ou seja, voltar a dar voz ao poder instituinte, para que as condições de organização do jogo político pudessem ser recompostas. Mas, quando se faz uma proposta dessas, tendo em vista que é uma proposta muito séria, da mais alta importância e gravidade, o mínimo que se espera é que se esteja preparado para todas as reações que virão. É óbvio que não viriam apenas reações entusiastas, mas também gritos de golpe e coisas dessa natureza. Ninguém que acompanha a política brasileira poderia imaginar o contrário. Então, isso me deixa muito preocupado. Quem fez isso no governo, ou não conhece o que é a política brasileira, a ponto de esperar que houvesse imediatamente uma reação popular entusiasta que poderia abafar toda a contradição, ou fez de uma maneira completamente irresponsável esse processo. E eu ainda insistiria em outro ponto. Não se resume à questão da Assembleia Constituinte para a reforma política. Nada da reforma política, no sentido forte do termo, de fato apareceu. O projeto de reforma política que está tramitando no Congresso é um projeto medonho em vários pontos. Tem pontos em que até consegue piorar o que é a legislação atual. Então, eu acho que ficou de fato uma resposta a ser dada nesse ponto.

Você tem sustentado a tese de que o modelo de desenvolvimento dos governos Lula e Dilma esgotou-se e, ao mesmo tempo, tem insistido na necessidade de haver um “segundo ciclo de políticas contra a desigualdade baseadas na universalização de serviços públicos de qualidade”. O que isso significa, do ponto de vista da estratégia política?

Acho que significa compreender que não há mais avanços na sociedade brasileira sem uma politização forte a respeito, entre outras coisas, da estrutura tributária do Brasil. Eu sei que esse é ponto sensível do jogo político brasileiro, porque isso significa colocar contra a parede setores hegemônicos, como os interesses do setor financeiro, como os interesses da elite que paga um imposto de renda absolutamente irrelevante e irrisório, e exige uma recomposição da estrutura tributária brasileira, retirando os impostos sobre consumo e direcionando para os impostos sobre renda. Eu tenho consciência de que isso significa um acirramento do conflito.

Mas eu diria que o acirramento é inevitável, vai ocorrer de uma maneira ou de outra. Porque o processo de ascensão social permitido pelo lulismo é um processo que de fato, a meu ver, se esgotou. Ele teve sua importância, não é uma questão de desqualificá-lo, mas se esgotou pelas suas próprias contradições internas. Os processos históricos são assim, funcionam durante certo momento, mas pelas suas próprias contradições, eles também se esgotam. Chegou nesse ponto. Em princípio não seria nada desesperador, se houvesse um outro processo em gestação. O que eu acho desesperador é perceber que não há um outro processo em gestação.

Em que sentido? Vou dar um exemplo, sobre o qual já insisti várias vezes: se você pega a estrutura de gastos de salário de uma família da dita nova classe média, que ganha em torno de R$ 3 mil reais, você percebe que, se essa família resolveu tirar seus filhos da escola pública e colocar na escola privada, se resolveu dar um melhor serviço de saúde para sua família, tirando do SUS e dando plano de saúde, se ela tiver dois filhos, ela gasta quase metade do seu salário com isso.

Não há isenção de imposto para essa família que permita que ela recupere essa quase metade do seu salário. Então é óbvio que há uma corrosão. Se ela não tivesse esses gastos, ela teria condições de gastar na economia, aumentando o potencial de consumo do mercado interno. Mas o acordo político do lulismo engessa, impede que se pague o custo político desse segundo ciclo de políticas contra a desigualdade.

O cientista político André Singer sustenta, com base em pesquisas empíricas, que, entre a parcela mais pobre e vulnerável da classe trabalhadora, predomina a rejeição à radicalização política. Segundo André Singer, o “subproletariado” quer mudanças, mas dentro da ordem. A isso eu acrescento um dado recente: uma pesquisa divulgada mostra que, no Rio de Janeiro, mais da metade da população situada na faixa de renda familiar até 2 salários mínimos é contra os protestos [51% x 44%]. Considerando que o “subproletariado” é base não apenas do governo Dilma, mas de qualquer governo de esquerda, e levando em conta a tese que você sustenta em um de seus livros, de que “o principal problema que acomete a esquerda atual é sua dificuldade em ser uma esquerda popular”(A esquerda que não teme dizer seu nome, Três Estrelas, 2012), como conciliar a necessidade de investir na radicalização política com o desafio de ser “uma esquerda popular”?

Eu tenho certo receio a respeito dessas pesquisas. Não que eu desconsidere a seriedade com que são feitas, mas eu acho que essas pesquisas de opinião têm uma característica muito específica. Não só elas são feitas num determinado momento e retratam bem certos momentos, mas a leitura de que o dito subproletariado é conservador é uma interpretação de dados.

Vou dar um exemplo claro. Durante muito tempo – isso André [Singer] conhece melhor do que eu – as pesquisas sobre a sensibilidade ideológica do eleitorado brasileiro diziam que nós tínhamos um eleitorado majoritariamente conservador, com um núcleo de eleitores de esquerda de 30% e o restante conservador. Num dado momento, acho que depois de muita crítica, resolveram fazer outras perguntas para esse mesmo eleitor, porque normalmente as perguntas eram “você acredita em Deus?”, “você acha que é certo o casamento homossexual?” e coisas dessa natureza. Resolveram então colocar questões econômicas: “você é a favor da intervenção do Estado na economia?”, “você é a favor ou não de serviços públicos?”.

A coisa se inverteu completamente. Então significa o quê? Significa que o eleitorado é conservador? Percebe a sutileza da interpretação? Sob um certo aspecto, ele é conservador. Sob outro, ele guarda bandeiras esquerdistas muito claras. É claro que se você perguntar para alguém – principalmente as pessoas mais vulneráveis – se ela quer ou não uma situação de instabilidade política, onde há rupturas constantes, fora meia dúzia de pessoas que sonham com a revolução permanente, você não vai encontrar ninguém para falar uma coisa dessa natureza.

Mas eu diria que essa talvez nem seja uma questão politicamente relevante, porque a questão é saber com que desejo você trabalha. Você pode querer trabalhar com esse desejo de permanência absoluta. Mas será que ele é o único? Não existiria um outro desejo, não só nas camadas populares, mas na população brasileira, de uma transformação radical das possibilidades de vida? Não seria uma questão política fundamental sua saber politizar esse desejo?

Tal como um indivíduo, camadas da população não têm um desejo só, mas vários desejos, muitos contraditórios entre si, e cabe aqueles que estão diante da experiência política saber dar a certos desejos saber dar a sua potência natural. Nesse sentido eu temo muito essa posição, por mais que ela não seja incorreta, de que, dado o fato de a população mais vulnerável brasileira ter horror ao caos, então é melhor a gente não fazer nada, por perceber o quão difícil é fazer qualquer coisa. Repare que Lula ganhou a eleição em 2002 a despeito disso, dentro de um processo muito forte de demandas de transformação. Os próprios estudos do André [Singer] mostram claramente que esse eleitorado foi para a candidatura Lula em 2006, não em 2002. E a despeito disso se conseguiu impor uma mudança na política brasileira.

Em seu livro A esquerda que não teme dizer seu nome, você critica a esquerda governista pela “incapacidade de sair dos impasses do nosso presidencialismo de coalizão” e, ao mesmo tempo, defende a necessidade de buscar uma nova estratégia “sem ter de apelar para ideias vagas como ‘tudo se resolve por meio da vontade política’”. Se o problema não reside na vontade política, qual é a origem dessa incapacidade?

Um mau raciocínio, uma má avaliação. É um pouco a história da esquerda latino–americana. Eu diria o seguinte: a gente tem o fantasma das transformações que foram fracassadas: o governo Allende, a experiência popular da república brasileira nos anos de 1960, e várias outras.

Por que fracassaram? Por exemplo, o governo Allende. “Ah, fracassou porque ele não conseguiu fazer uma coalizão com a democracia cristã”, “se ele tivesse conquistado o centro, ele teria conseguido se preservar”. E isso ficou durante muito tempo. Eu lembro, por exemplo, quando houve o golpe na Venezuela, diziam na época que Chávez conseguiu voltar porque ele tinha um setor a mais, que normalmente a esquerda não tem, que é o exército.

Então acho que tinha muito essa ideia, de que nós sozinhos não conseguimos, vamos precisar criar coalizões mais amplas. Então, eu diria que esse é um dos fantasmas da esquerda latinoamericana, ou pelo menos de um setor da esquerda. Isso tocou o Brasil. Era um pouco aquela ideia de que é preciso durar, é preciso dar um jeito de durar, pois senão em dois anos vai tudo pro espaço, tudo acaba. Então, criou-se essa noção de que era necessário conseguir construir grandes coalizões.

O PT deveria então ser mais um polo de um consórcio de grandes coalizões. Só tem um preço alto a ser pago. Pode até ser que num dado momento isso possa trazer algum tipo de benefício no que diz respeito à tranquilidade necessária para fazer passar algumas coisas da política. Mas o preço fundamental é o esgarçamento completo do campo político. E quem vai pagar o preço do esgarçamento é quem controla o consórcio. Isso aconteceu em outras circunstâncias. Por exemplo: pega o caso da esquerda italiana. O Partido Comunista Italiano era o maior partido da Europa ocidental. Tinha uma experiência de debates teóricos não negligenciável, é o mínimo que se pode dizer.

O que aconteceu, para que a Itália se transformasse no maior buraco negro da esquerda mundial, com nível zero de qualquer tipo de dinâmica interna no campo da esquerda? Porque quando, enfim, os comunistas chegaram ao poder dentro de uma grande coalizão, e fizeram todos os acordos necessários para colocar a Itália no euro, para fazer todos os pactos que ninguém conseguia fazer com os sindicatos, e então entrar dentro de uma política que, em princípio, seria “responsável”, o preço foi pago por aquele que coordenava o consórcio, porque dele se esperava outra coisa.

Então eu diria que o preço que nós vamos pagar por esse aprisionamento, por essa falta de criatividade política, é alto. E não é só uma questão de falta de vontade, pois não se trata de acreditar que um simples espontaneísmo possa operar grandes transformações, mas eu acho que existe outra coisa chamada criatividade política, que tem a ver com o interesse em experiências distintas que vão forçando a democracia representativa em direção a uma democracia direta, a uma democracia real. São essas experiências que deveriam ser absorvidas, paulatinamente que seja, num projeto de longo prazo, ou localmente que seja, mas que não foram absorvidas em absoluto. Você poderia dizer: “Mas o governo brasileiro é o que tem o maior número de conselhos consultivos do mundo”.

Esse é um belo exemplo. Esses conselhos são exatamente o que são, ou seja, meros conselhos consultivos, não têm nenhum poder deliberativo, que fizesse com que se transferisse poder do Executivo, do Legislativo e do Judiciário em direção aos espaços de democracia direta.

Sobre a violência nas manifestações, você escreveu recentemente: “Melhor seria se procurássemos analisar tal violência como um profundo sintoma social da vida política nacional contemporânea. /…/ a violência aparece como a primeira revolta contra a impotência política./…/ Como todo sintoma, há algo que essa violência nos diz. A resposta a ela não será policial, mas política”. Como você encara o debate sobre a violência na conjuntura atual?

Acho que esse debate está sendo posto de uma maneira muito ruim. Quando eu digo que a violência que aparece hoje nas manifestações é um sintoma social, trata-se de dizer que todo sintoma é uma resposta ruim para um bom problema, uma resposta problemática para um problema concreto. E eu acho que se tende muito a esquecer qual é o problema concreto para o qual essa violência aponta. Essas pessoas que acabaram optando por saídas do tipo Black Blocs, elas não saíram do nada. Se elas começaram a ganhar certa relevância, é porque elas entram dentro de um movimento de surdez da política brasileira em relação à necessidade de ampliação de suas pautas.

Nós podemos falar isso com a maior tranquilidade. No debate presidencial – numa eleição que vai ocorrer daqui meses – você percebe que não há nenhum candidato que seja capaz de vocalizar uma parte que seja de boa parte das demandas que apareceram. Eu acho interessante ver pessoas dizendo haver uma confusão de demandas nas manifestações, mas eu não vejo tanta confusão, na verdade eu vejo coisas muito claras. As pessoas saíram às ruas reclamando que queriam escola pública, que queriam saúde pública, elas falaram que o transporte público no Brasil é medonho. Elas não conseguem entender por que, afinal de contas, esse transporte foi privatizado em várias cidades, com a desculpa de que através da privatização se ganharia em eficácia e eficiência do sistema e, no entanto, graças à privatização, se construiu uma máfia do transporte público, que tem duas funções: a primeira, se autoperpetuar enquanto sistema de rentabilização do capital sem nenhum entrave; a segunda, financiar campanhas políticas.

Não tem nenhuma outra função além dessas duas. Então a gente tem de se perguntar por que isso existe. Por que não é possível quebrar? As pessoas também reclamaram da estrutura do poder político brasileiro, pois elas não se sentem mais ouvidas. Não é à toa que a população foi quebrar o Congresso Nacional e teve que ser desviada para quebrar o Palácio do Itamaraty. Elas reclamam da Copa do Mundo, e reclamam com propriedade, pois foi vendido algo completamente diferente, de que haveria uma grande modificação da estrutura das cidades brasileiras. Várias pessoas acreditaram nisso e o resultado está muito longe disso. Nesse sentido, eu acho que se esse descontentamento e essa insatisfação aparecem de maneira violenta, não é a primeira vez na história que isso acontece.

De maneira violenta e até mesmo de maneira irracional, no sentido de que não se consegue dirigir, não é a primeira vez que isso acontece. A gente já viu isso em várias e várias circunstâncias. Isso indica simplesmente o quê? Que é necessário saber ouvir – essa é a primeira condição – e depois que é necessário oferecer uma resposta, que não é uma resposta policial, mas uma resposta política.

Tratando das manifestações, você escreveu: “/…/ um acontecimento, por mais intensidade que tenha em sua eclosão, é medido por sua capacidade de deixar marcas. /…/ Convém lembrar que um acontecimento político não é medido, necessariamente, pela modificação institucional que ele produz. Esta pode vir apenas décadas depois”. Que marcas os protestos de junho deixaram?

Elas deixaram muito evidente o nível de descontentamento da população brasileira, e o fato de esse descontentamento ser plástico, ou seja, pode ir para qualquer lugar. Isso é uma coisa boa e ruim ao mesmo tempo. Essa plasticidade indica haver um combate ideológico e político a ser feito, tendo em vista a capacidade de dar respostas à altura para esse descontentamento. Não apenas dar um nome para ele, mas mostrar que é possível fazer algo. Esse ponto é o que mais me atemoriza na situação brasileira.

Uma das experiências mais interessantes da esquerda dos últimos anos é o que está ocorrendo no Uruguai. Uma belíssima experiência. Por quê? Porque eles tiveram a seguinte sensibilidade: tão importante quanto mostrar à população que a esquerda, quando ganha, é capaz de lutar contra a desigualdade econômica e a pauperização de grandes camadas da população, é mostrar que, quando a esquerda ganha, a vida muda.

Outra vida que aparece. Outras possibilidades das vidas individuais das pessoas que vão aparecendo. Outro modo de se pensar questões no sentido mais amplo da sociabilidade no interior da vida social. Bater de frente com as pautas do conservadorismo moral: aprovar o casamento homossexual, pensar a questão da maconha, do aborto. Então acho que essa é uma grande sensibilidade. Eu acho que esse é o nível de resposta que as pessoas esperam. Mostrar que a vida pode ser diferente, de verdade, naquilo que realmente toca as pessoas, em vários sentidos, em vários aspectos. Nesse sentido, eu temo pela experiência brasileira. Nós perdemos muitas possibilidades de mostrar isso, por fazer cálculos sobre a conjuntura política, sobre a correlação de forças e coisas dessa natureza. Ocorre que a correlação de forças não é uma questão política. E eu não estou propondo um esquerdismo infantil. Há exemplos históricos muito fortes nesse sentido, e que nem precisam vir da esquerda.

Por exemplo: na França, uma das primeiras coisas que o governo Mitterand fez foi acabar com a pena de morte. Todas as pesquisas demonstravam que a população era majoritariamente a favor da pena de morte. E mesmo assim Mitterand acabou com a pena de morte. Hoje, qualquer pesquisa na França demonstra que a população é majoritariamente contra a pena de morte. Há horas que o governo tem de ir lá onde a sociedade não quer ir. Mas, para isso, é necessário ter muita clareza do porquê você está lá. Há horas que a correlação de forças é contra você, mas você faz. A correlação de forças era contra ele, todo mundo gritou, mas ele fez. E passou. E a lei mudou. E foi muito importante que ele tivesse feito dessa forma.

Do Abraço Animal

Imagem emprestada do livro O Livro dos Abraços

Imagem emprestada do livro O Livro dos Abraços

Ao sermos arrastados para a vida pela violência afirmativa do acontecimento, percebemos a incapacidade humana de apenas interpretar o que é deixado como efeito. Saímos da potência indelével do acontecimento e somos jogados nas classificações e identificações que pretendem representar e designar as coisas por meio de proposições, substantivos, adjetivos… E como nos diz Deleuze, “atributos lógicos caracterizam o instante infinitivo de uma transformação incorporal.” Mas temos os verbos que expressam o acontecimento (No início era o verbo…).

Aos humanos, tudo ganha sentido quando “ensignado”. Não há informação ou comunicação no ato de “ensignar”. Nele impera a ordem que remete à própria ordem: operar no mundo por meio da redundância planificada por coordenadas semióticas bem estabelecidas e fundadas em dispositivos de dualidade, identificação, ramificações, decalques, limites, pressões que se repetem sem vida, mas de modo servil. Após o acontecimento, a funcionalidade extensiva às modulações biopolíticas que fazem dos corpos hospedeiros do estado de coisas constituído.

Assim se procede na relação homem-animal, segundo a ordem humana. Não precisaríamos apelar para a razão para sabermos que o homem é posterior ao animal. As próprias razões míticas e mistificadas deixam isso claro. O humano nomeia, identifica, divide, compara e limita o animal em um explicito esforço de se tornar humano demasiado humano. Tudo se torna humano porque o homem é um animal racional capaz de controle sobre a natureza. Antropomorfização do mundo, das relações com a natureza e dos instintos convertidos em afetos.

Não se tem dúvida que o abraço é um afeto. O problema colocado aqui é o de que o abraço seria mais animal do que humano. A falta de abraço é tão dura quanto a falta de dignidade para a vida humana. Em um abraço não são apenas corpos fisiológicos que se entrelaçam, mas, sim, todas as experiências compartilhadas nos corpos que se entrelaçam. Os abraços são como os olhares. Olhar o olhar do outro é esquecer-se da cor dos próprios olhos, diz-nos o animal Levinas. Derrida arremata dizendo que “ele fala então do homem, do próximo enquanto homem, do semelhante e do irmão, ele pensa no outro homem (…)”. A ética antes da ontologia. A produção da existência antes de uma definição da existência. Um olhar nu! Um olhar que se desfaz de si mesmo e de seus nomes para olhar o outro em sua inquietude de animal, posto que se olhe o homem ainda por se fazer em uma completa angustia abissal. Um olhar que ultrapassa todos os limites do home que tenta nomear a si mesmo a partir de suas crenças. Um olhar virulento e vil de um homem infame que renega a sua própria natureza humana fabricada.

Abraçar é potência. Como poderia haver abraços em uma ordenação do mundo onde a liberdade é conferida no corpo como propriedade individual? Como o abraço se converteria em valor social por meio de uma vontade livre determinada por limites que pretendem afastar os indivíduos da ditadura do outro? Estes questionamentos servem para problematizarmos as práticas neoliberais.

Soubemos por meio do sitio eletrônico da revista Carta Capital, em uma reportagem intitulada “Os abraços eleitorais à Aécio”, que “O pré-candidato do PSDB à presidência da República, Aécio Neves, fez a sua primeira ação virtual clara na internet com vistas à eleição de outubro”. Usando seu aniversário como mote, o pré-candidato do PSDB à presidência da República, recebeu de diversos esportistas, artistas e de ditos famosos “abraços virtuais”.

Não nos cabe dizer o que os outros pensam ou se suas ações são equivocadas ou não. Cada um fala o que quer e o que pode durante a produção e reprodução de sua existência. Contudo, podemos insistir no caso de que os abraços, bem como a linguagem em Bakhtin, é um carnaval: riso, alegria, paródia com os cultos dogmáticos do misticismo e das religiões convertidas em instituições punitivas, isto é, a própria vida sendo representada na comicidade dos elementos constituintes da festa que encontra sua mobilidade e multiplicidade na animalidade das camadas consideradas mais baixas por estruturas sociais constituídas.

O abraço é animal por ser entrelaçamento de corpos na intensidade, no agenciamento, no desejo; produzido no entrecruzamento de comportamentos sempre por se fazerem: etologia filosófica.

O abraço é como as cidades dos antigos, que eram chamadas de política e, hoje, conhecemos como república. Mas antes de se fazer coisa pública, o abraço é privado somente pela exigência de se aprender a viver uma vida sem privações na publicidade do bem comum. Aprende-se com os animais que a vida privada é uma preparação para a vida pública. Portanto, compreendemos que os abraços são demonstrações nuas, incorporais, que não precisam de demonstrações que exageram o absurdo de uma existência esvaziada por sua exorbitante aparição em meios mediáticos.

Eduardo Galeano, em seu Livro dos Abraços, talvez concorde com estas nossas opiniões meio desajeitadas, pois escreve:

“Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços”.    

 

Carta Capital entrevista David Harvey: “Zapatismo foi um movimento indígena com características ocidentais”

Pego da Carta Capital

Pesquisador de revoltas recentes ao redor do mundo, o geógrafo britânico David Harvey reconhece a influência dos zapatistas nos novos levantes que têm surgido. Mas ele pondera que algumas das suas características são ignoradas pela esquerda em diversos países.

O geógrafo concedeu uma entrevista à reportagem deCartaCapital, na qual fala sobre o legado do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que há vinte anos tomou o controle de parte da pobre província mexicana de Chiapas.

Harvey destaca as novidades trazidas pelo levante, como a ênfase no direito das mulheres. Ele, porém, se diz “cansado” das pessoas acharem que a revolução “sairá de Chiapas”. Para o geógrafo, a esquerda deve achar uma forma própria de se organizar na cidade. Leia abaixo as falas do geógrafo sobre o levante:

Movimento indígena com características ocidentais

O zapatismo é retratado às vezes como somente um movimento indígena. Mas ele não é isso. É um movimento indígena com caraterísticas ocidentais. Um movimento horizontal, mas com formas militares hierarquizadas. Ou seja, é uma forma híbrida.

Obviamente o zapatismo teve um impacto muito grande na esquerda. A esquerda mundial ficou muito impressionada com suas formas horizontais de governança, mas falhou em reconhecer que a parte militar dessa organização a modificou muito.

Direitos das mulheres

Os zapatistas abordaram muitas questões importantes para essas sociedades (indígenas), como os direitos das mulheres, de uma maneira muito importante. Foi muito excitante ver a questão de gênero, em toda sua dimensão, ser propriamente abordada e articulada pelos zapatistas. [Diversas das figuras mais proeminentes do movimento eram mulheres e, logo após o levante, os zapatistas fizeram uma serie de reivindicações específicas em relação a elas].

Os direitos das mulheres estavam arraigados muito neste movimento, o que não é necessariamente verdade em outras populações indígenas e na esquerda. Mais uma vez, nessa questão, eles tinham características especiais.

Teologia da libertação

O movimento era uma combinação brilhante de pensamento indígena com perspectivas do iluminismo ocidental. Particularmente, havia uma influência de doutrinas do catolicismo, como dos franciscanos [conjunto de ordens católicas com forte presença na América Latina]. Eu acho que foi a expressão de ideias como respeito e dignidade, vindas de Chiapas, que agarraram a imaginação do mundo.

Foi uma combinação peculiar, onde a posição do subcomandante Marcos foi extremamente crucial. Não só em termos de organizar a parte militar, mas também de apresentar suas ideias ao mundo, que muito dificilmente poderiam ser entendidas. Então, quando ele falava de respeito e dignidade, ele estava em uma longa história da teologia da libertação, por exemplo. E as pessoas responderam a isso.

Ação fora do Estado

Havia também a característica de que aquele não era um partido político, não queria tomar o poder do Estado. Os zapatistas só queriam autonomia, e isso foi atraente para muitas pessoas ao redor do mundo. Eles estavam, desta forma, se protegendo da exploração. Quando se faz isso, você mantém-se fora dos limites, mas isso também gera muitos problemas. Eles precisam de recursos, eles precisam de armas, é uma história muito complicada.

A revolução não sairá de Chiapas

As vezes eu fico um pouco cansado porque em partes da Europa e da América do Norte as pessoas acham que a revolução vai sair de Chiapas e salvar a nós todos. Meu argumento é que a gente não pode simplesmente tirar aquilo do México e trazer para cá, nós temos de inventar nossas próprias maneiras de fazer política, de acordo com as nossas próprias circunstâncias.

Nós não estamos vivendo em Chiapas, nós estamos vivendo em Pittsburgh, em Detroit, em São Paulo. E a gente precisa pensar nas nossas próprias formas de se organizar em grandes cidades como essas.

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Boaventura Santos: “Desculpe, Presidente Evo”

Do Correio Do Brasil

12/7/2013 15:49

Por Boaventura de Sousa Santos – de Lisboa

 

 

Esperei uma semana que o governo do meu país lhe pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de Estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em Moscou, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua própria vida. Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu desculpa. Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um continente que são capazes de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional.

O meu pedido de desculpas não tem qualquer valor diplomático mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um ato individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões. Alegramo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibramos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, senhor Presidente, que, a muitos quilômetros de distância, muitos de nós estávamos lá, embebidos no ar mágico dos Andes.

O senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se tratou de mais um ato de arrogância colonial no seguimento de uma longa e dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um Presidente índio é sempre mais índio do que Presidente e, por isso, é de esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram. Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indígena num país de maioria indígena.

Evo

Evo unificou a Bolívia com o respeito aos ritos e tradições dos índios locais

Mas sei que também está atento às diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de novembro de 2007, durante a XVII Cúpula Iberoamericana, realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por qué no te callas” ficará na história das relações internacionais como um símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências ex-colonizadoras e as suas ex-colônias. De facto, não se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congênere europeu, quaisquer que fossem as razões.

O senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais humilhante, mas não lhe escapará o fato de que, no seu caso, a Europa não agiu espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do direito internacional. Sinais dos tempos, senhor Presidente: a arrogância colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distância entre elas e tantos europeus, como eu, que veem na Bolí­via um país amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democráticas.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

As manifestações de junho e a mídia

Do Brasil de Fato

Do ponto de vista da grande mídia, é indispensável que se reflita sobre o tipo de cobertura política que vem sendo oferecida ao país

25/06/2013

Venício A. de Lima

Apesar da proximidade cronológica, parece razoável observar que o estopim para as manifestações populares que estão ocorrendo no país foi o aumento das tarifas do transporte coletivo e a repressão violenta da polícia (vitimando, inclusive, jornalistas no exercício de sua atividade profissional) – não só à primeira passeata realizada em São Paulo, mas também à manifestação realizada antes da abertura da Copa das Confederações, em Brasília. A partir daí, um conjunto de insatisfações que vinha sendo represado explodiu.

A primeira reação da grande mídia, bem como das autoridades públicas, foi de condenação pura e simples das manifestações que, segundo eles, deveriam ser reprimidas com ainda maior rigor. No entanto, à medida que o fenômeno se alastrou, autoridades e mídia alteraram a avaliação inicial.

A grande mídia, então, passa a cobrir os acontecimentos como se fosse apenas uma observadora neutra, que nada tem a ver com os fatos que desencadearam – para o bem ou para o mal – todo o processo.

Centralidade da mídia

Nas sociedades contemporâneas, apesar da velocidade das mudanças tecnológicas, sobretudo no campo das comunicações, a centralidade da mídia é tamanha que nada ocorre sem seu envolvimento direto e/ou indireto. Qual teria sido esse envolvimento no desencadeamento das atuais manifestações?

Um primeiro aspecto chama a atenção. Pelo que se sabe as manifestações têm sido convocadas por meio de redes sociais. Isto é, através de um sistema de comunicação independente do controle da grande mídia.

Na verdade, a se confirmar que a maioria dos participantes é de jovens (em Brasília, um dos “convocadores” da “Marcha do Vinagre” tem apenas 17 anos), trata-se de um segmento da população que se informa prioritariamente pelas redes sociais na internet e não pela grande mídia – jornais, revistas, radio, televisão.

Apesar disso, um aspecto aparentemente contraditório, mas fundamental – revelado inclusive em cartazes dispersos nas manifestações – é que os manifestantes se consideram “sem voz pública”, isto é, sem espaço para expressar e ter a voz ouvida.

Desnecessário lembrar que a grande mídia ainda exerce, na prática, o controle do acesso ao debate público, vale dizer, das vozes que se expressam e são ouvidas.

Além disso, a cultura política que vem sendo construída e consolidada no Brasil, pelo menos desde que a televisão se transformou em “mídia de massa” hegemônica, tem sido de desqualificação permanente da política e dos políticos. E é no contexto dessa cultura política que as novas gerações estão sendo formadas – mesmo não se utilizando diretamente da velha mídia.

Emerge, então, uma questão delicada.

A mídia e o system blame

Independentemente das inúmeras e verdadeiras razões que justificam a expressão democrática de uma insatisfação generalizada por parte de parcela importante da população brasileira, não se pode ignorar o papel da grande mídia na construção dessa cultura política que desqualifica sistematicamente a política e os políticos. E mais importante: não se pode ignorar os riscos potenciais para o regime democrático da prevalência dessa cultura política.

Recorri inúmeras vezes, ao longo dos anos, a uma arguta observação da professora Maria do Carmo Campello de Souza (já falecida) ao tempo da transição para a democracia, ainda no final da década de 1980.

Em capítulo com o título “A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles”, publicado em livro organizado por Alfred Stepan Democratizando o Brasil (Paz e Terra, 1988), ela discute, dentre outras, a questão da credibilidade da democracia. Nas rupturas democráticas, afirma ela, as crises econômicas têm menor peso causal do que a presença ou ausência do system blame (literalmente, “culpar o sistema”), isto é, a avaliação negativa do sistema democrático responsabilizando-o pela situação.

Citando especificamente os exemplos da Alemanha e da Áustria na década de 1930, lembra Campello de Souza que “o processo de avaliação negativa do sistema democrático estava tão disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa do regime democrático, eles já se encontravam reduzidos a uma minoria para serem capazes de impedir a ruptura”.

A análise da situação brasileira, há mais de duas décadas, parece mais atual do que nunca. A contribuição insidiosa da mídia para o incremento do system blame é apontada como um dos obstáculos à consolidação democrática. Vale a pena a longa citação:

A intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro requer um estudo linguístico sistemático sobre o “discurso adversário” em relação à democracia, expresso pelos meios de comunicação. Parece-nos possível dizer (…) que os meios de comunicação tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (…). Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7). (…)

O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (…) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos. (…) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (…). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (…). (pp.588-9, passim).

Avanços e riscos

As manifestações populares devem, por óbvio, ser vistas por aqueles em posição de poder como uma oportunidade de avançar, de reconsiderar prioridades e políticas públicas.

Do ponto de vista da grande mídia, é indispensável que se reflita sobre o tipo de cobertura política que vem sendo oferecida ao país. Encontrar o ponto ideal entre a fiscalização do poder público e, ao mesmo tempo, contribuir para o fortalecimento e a consolidação democrática, não deveria constituir em objetivo da grande mídia? A quem interessa a ruptura democrática?

Apesar de ser um tema delicado e difícil – ou exatamente por essa razão – é fundamental que se considere os limites entre uma cobertura sistematicamente adversária da política e dos políticos e os riscos de ruptura do próprio sistema democrático.

A ver.

Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros.

Chomsky: “Estou com os manifestantes do Brasil”

Avram Noam Chomsky. Foto: Camila Nobrega

Camila Nobrega
Do Canal Ibase
Enviada a Bonn (Alemanha)

Cercado de jornalistas e curiosos de pelo menos 30 países, na noite desta segunda-feira (17/6), o linguista e crítico político de renome mundial Avram Noam Chomsky, de 84 anos, caminhava lentamente para se retirar da plenária após sua palestra no Forum Global de Midia, em Bonn (Alemanha). Estava acompanhado de seguranças e assessores que tentavam manter todos afastados e não parecia disposto a responder mais indagações. Em uma fileira formada ao lado dele, consegui gritar uma pergunta. Ao ouvir as palavras “Turquia” e “Brasil”, Chomsky virou-se para mim, respondendo-a:

– Embora sejam protestos diferentes e com suas peculiaridades, as manifestações nos dois países são tentativas de o povo recuperar a participação nas decisões. É uma forma de ir contra o domínio dos interesses de grupos econômicos. Acho ambos muito importantes e posso dizer que estou com os manifestantes – disse o linguista, entusiasta do movimento “Occuppy”, declarando apoio ao movimento que toma as ruas de cidades brasileiras e também aos manifestantes turcos.

Ele tem razão ao tentar separar os dois movimentos. Embora semelhanças pareçam gritar neste momento, devido ao cunho popular de ambos os protestos, são países de contextos socioeconômicos e culturais muito diferentes. Qualquer tentativa de relacioná-los pode ser leviana, se nao forem tomadas as devidas ressalvas.

Mas, há, no entanto, uma característica que une brasileiros e turcos neste momento: a tentativa de recuperar diferentes formas de liberdade e mostrar que a sociedade civil está acordada. Durante seu discurso para cerca de duas mil pessoas, entre jornalistas, autoridades europeias e pesquisadores do mundo inteiro reunidos para o fórum que ocorre até esta quarta-feira, na pequena cidade de Bonn, Chomsky afirmou que a ocupação da praca Taksim é um microcosmo da defesa dos bens comuns.

– Trata-se de um movimento global contra a violêcia que ameaça a liberdade em diferentes países. As pessoas estão indo as ruas para defender bens comuns, aqueles que são compartilhados dentro das sociedades. O capitalismo baseado na massificação de privatizações não compreende a gestão coletiva, aí esta o problema. Os movimentos que ocorrem neste momento são legítimos, na tentativa de recuperar a participação popular na gestão destes bens.

Para além da dominação econômica

Chomsky discursa para mais de duas mil pessoas. Foto: Camila Nobrega

O discurso de Chomsky esteve centrado principalmente em uma crítica às estratégias de desenvolvimento norte-americanas e ao poder das grandes corporações multinacionais atualmente. Para o pensador, as privatizações de recursos básicos, alicerces dos regimes neoliberais, alteram a relação dos cidadãos com o mundo a sua volta e reduzem também a noção de bens comuns.

– Para muitas sociedades, a propriedade privada se tornou aparentemente a única possibilidade de divisão de territórios e recursos. Isso está acabando com essa noção do que é comum – disse, ampliando a análise para a participação social: – Existe um pensamento muito difundido em sistemas politicos e econômicos pautados em ideais liberais que defende a manutenção do poder de decisão nas mãos de poucas pessoas, que seriam o grupo mais “bem preparado” da sociedade. Os demais seriam apenas espectadores. É contra isso que alguns grupos estão lutando.

A base desse pensamento parte de um dado bastante claro que Chomsky trouxe à tona: segundo ele, 70% da população norte-americana, por exemplo, não tem qualquer influência sobre a política nacional. Ou seja, a maioria da população não tem poder, por exemplo, sobre políticas públicas que afetam suas vidas diariamente.

Autor de mais de 70 livros e considerado um dos principais intelectuais vivos atualmente (a quantidade de vezes que ele aparece em citacoes bibliograficas nos dias de hoje se assemelha a de grandes filósofos, como Platão), Noam Chomsky é, na verdade, um grande defensor da capacidade humana de criar e de se libertar de estruturas de dominação. Seus pensamentos vieram a público no início da decada de 1960, quando ele fez uma crítica aberta a outros linguistas, atacando a noção de behaviorismo, segundo a qual o ser humano aprende apenas por imitação. Chomsky defendia, já àquela época, a existência de uma capacidade inata do ser humano de se expressar, de diferentes formas.

Ao longo dos anos, ele foi adaptando este pensamento a um contexto político e se tornou um dos mais vorazes criticos do sistema politico-econômico e também cultural dos Estados Unidos. Nascido na Filadélfia, ele se tornou uma voz dissonante dentro do território norte-americano.

Frente a uma plateia composta de pessoas vindas de todo o mundo para a conferência em Bonn, mas majoritariamente de europeus, o discurso de Chomsky pareceu soar um pouco anacrônico. Foi o que se ouviu nos corredores. Não foi essa a interpretação, porém, de participantes vindos de países africanos em desenvolvimento. Não houve também anacronismo para os representantes turcos que estão por aqui, ou de outras pessoas vindas da região que vive hoje a Primavera Árabe. Para estes grupos, nos quais o Brasil parece se incluir, uma fala de Chomsky ecoou:

– O termo democracia pode parecer óbvio para alguns, e aí está a ameaça. Há vários tipos de democracia, várias formas de aplicação deste conceito. O que podemos pensar é: este tipo de democracia onde a esmagadora maioria da população não tem participação alguma é a que queremos?

Não é preciso muito mais para explicar o porquê de os representantes brasileiros, após o discurso de Chomsky, terem se sentado à mesa com turcos, sulafricanos e outros representantes de países cujos projetos de democracia e desenvolvimento estão sendo contestados neste momento. Observando de outro continente as manifestações que estão parando cidades brasileiras nos últimos dias, o discurso do linguista não parece nem um pouco anacrônico.

Palavra de protesto

Muito mais ativa e clara, é a palavra que surge no mundo como ato de protesto. Mas todas as palavras são atos de protesto. Todas. Com uma condição necessária: as palavras devem quebrar a relação que há no ordinário entre seu significado totalitário legítimo e seu efeito redundante no real, rompendo o elo entre palavra e identidade significativa imposta por um consenso que dissimula a vontade de todos. Não se trata de repetir discursos e práticas legitimadas pelo poder do Estado e suas instâncias legais, responsáveis por um totalitarismo linguístico. Efetuar este corte é fazer o que Mallarmé diz referente ao enunciado: “Enunciar significa produzir: ele grita suas demonstrações práticas”.

O enunciado, presente na palavra de protesto, não pode ser reduzido à correspondência entre o consenso da democracia representativa e as legalidades normativas que ditam a verdade jurídica do poder. Se assim for, toda ação de ilegitimidade do protesto irá se concentrar não apenas na confissão necessária arrancada pela tortura, que faz a fala se manifestar em sua impotência fisiológica, psicológica e social; mas, de forma mais contundente e ostensiva, em qualquer prova material capaz de articular a coincidência entre ato e infração da lei. De outro modo: quando a palavra-ato no protesto é analisada sob as estruturas linguísticas do Estado, ela se torna ilegítima toda vez que sua ação crítica é radical e ultrapassa os limites da racionalidade normativa do Estado.   

Os eventos que vem ocorrendo no Brasil, reivindicando melhorias para o transporte público, vem sofrendo uma série de ataques da mídia defensora de uma língua maior (maior, não porque se constitui como maioria numérica, mas porque monopoliza a verdade através da gramática do poder, reproduzindo os significados de opressão e coação reconhecidos pelo Estado). Esta defesa é justamente o elo entre significado totalitário, e seus efeitos redundantes no real, espraiado pelos meios de comunicação. Este elo fica cada vez mais forte quanto mais é negada a história dos protestos, presentes como crítica narrativa, e são reduzidos às imagens e notícias que tendem a pender somente para um lado: o da direita raivosa.

Deste modo, esta mídia maior faz um grande esforço para rotular os protestos como badernas e intromissão direta no direito de ir vir da população. Sendo assim, seria até cômico chegarmos à conclusão de que os protestos, ao contrário do que a mídia maior noticia, são lutas pelo direito à livre circulação urbana. Mas nada de cômico há aí, pois a circulação urbana é a exigência de toda revolução, é ela a própria revolução (Paul Virilio). A revolução luta contra o que foi estacionado historicamente por meio das regras e acordos entre Estados e instituições capitalistas responsáveis por regulamentar a circulação na cidade.

Neste sentido, o poder do Estado é o poder de polícia confundido com o controle e regulamentação da circulação viária, de mercadorias e pessoas, fazendo a revolução (os protestos no Brasil atualmente, por exemplo) ser confundida com o engarrafamento, o estacionamento ilícito desta circulação. Nenhum protesto é bom para o Estado, uma vez que seu controle de regulamentar a circulação é colocado em dúvida.

Os vários casos de violência, praticados pelo poder do Estado que estão ocorrendo durante os recentes protestos, deixam bastante claro o quanto o monopólio da violência exercido pelo Estado é ratificado pela mídia maior e, talvez pior, o quanto esta mídia se esforça para fazer com que os protestos sejam considerados ilícitos por suas lentes e microfones.

Quando esta mídia acéfala age de tal maneira, ela demonstra nada entender de uma linguagem liberta da redundância dos significantes das palavras de ordem – provindas de verdades legitimadas mais pela força dos cassetetes, de balas de borracha em olhos investigadores, lágrimas provocadas por gás lacrimogêneo e capas de revistas pautadas no rancor, no reativo e na impotência – protetores das linguagens totalitárias. (Aliás, será se a mídia tem interesse em agir de outra maneira?) É esta linguagem liberta, gerada por uma razão movimentada na diversidade de atos interpretativos que podem fazer surgir, não apenas acordos ou consensos, mas o bem comum a todos na cidade.