Quando a gente vê os índices indecorosos da educação no Amazonas, sempre e sempre ocupando heroicamente os últimos lugares do ranking brasileiro, em qualquer modalidade, quase uma espécie de Estados Unidos nas Olimpíadas do Vexame Governamental, pensamos que a falência da educação numa cidade se reduz à má gestão do seu aparelho educacional.
E esquecemos que, na ordem cronológica, o ensino e a educação nasceram primeiro que o controle estatal sobre os saberes.
Existem zil evidências do quanto um governo é especialista em produzir nós invisíveis que fazem com que os microfascismos cotidianos se fortaleçam e se disseminem. Um leitor deste Poli nos relatou um ocorrido nesta tarde que demonstra bem o que queremos mostrar.
Esteve ele na tarde desta segunda-feira nos parques públicos Largo Mestre Chico e Parque Jeferson Peres, com sua bicicleta, para um passeio. Ao chegar pedalando ao primeiro parque, foi literamente “enquadrado” pela segurança do local, que se aproximou aos apitos, segurou a bicicleta pelo guidão, e disse que, pedaladas, somente no “espaço destinado” para tal atividade. O espaço é uma “ciclovia”, de ida e volta, com pouco mais de metro e meio de largura e cento e poucos de comprimento. Intimidado pelo olhar à Lá Siqueira dado pelos seguranças, o leitor foi ao Parque Jeferson Peres onde, segundo o governador, “só não há espaço para violência, tristeza. Há espaço para a liberdade, à ordem”. Mas lá ele sequer conseguiu entrar. O segurança, de longe, com o mesmo apitar de seus vizinhos de parque, fazia com os braços o movimento negativo.
No caso do Mestre Chico, a proibição é recente. Até pouco antes da inauguração, caminhantes e bicicletas dividiam harmonicamente o espaço do parque. Já o Jeferson Peres, este parece que incorporou a rígida ordem moral transfigurada na retidão de quem lhe deu o nome.
O GUIDÃO DO PIAGET
Quem é que manda no seu guidão, caro leitor? Bom, o psicólogo, pedagogo, cientista, linguista e estudioso do desenvolvimento infantil, Jean Piaget, afirma existirem três fases do desenvolvimento moral do ser humano.
Na primeira fase, chamada de Anomia, a bicicleta simplesmente não tem guidão! Nesta fase, as normas e valores morais ainda não se fazem presentes à consciência da criança. Se sente fome, chora; se se sente contrariada, reage. Trata-se de simples ação-e-reação, sem reflexão.
Na segunda fase, conhecida como Heteronomia, o sistema de normas e valores pintam tal como são. Exógenos. É uma fase conflituosa, onde não há mediação. Há uma relação de supremacia, onde o mais forte – a norma moral social – subjuga a vontade pela força, positiva ou negativa. Seja através de uma recompensa ou de uma punição, a iniciativa continuará sendo uma reação. No entanto, já existe um certo grau de consciência da pré-existência das normas. Fato é que, longe do big stick moral, os fixados nesta fase voltam aos velhos tempos de anomia irracional. Ou seja, a bicicleta tem guidão, mas quem o controla é o outro.
A terceira, última e mais difícil de ser alcançada: a Autonomia. Capacidade de autogoverno. Não há mais reação. A ação parte do próprio sujeito. Mas não pense você que houve “introjeção”, “absorção”, ou coisa que o valha das regras. Ao contrário, houve uma elaboração racional, uma análise e uma produção ético-estética. Ser autônomo não é obedecer à regra social, mas expressar uma conduta ética condizente com os próprios princípios, normas e valores, erigidos a partir da razão e da inteligência. Segura no guidão e guia a bicicleta com segurança e tranquilidade, escolhendo conscientemente para onde se vai.
Neste sentido, é possível que o bicicletante Piaget (sim, ele adorava andar de bicicleta!) encontre nesse passeio educacional outro educador, Baruch de Spinoza. Para este, não tem essa: o aumento da potência de agir, que aproxima o ser humano da perfeição e do desenvolvimento ético/democrático, passa pela autonomia: nos aproximamos da perfeição quanto mais somos agentes de nossas ações, e nos afastamos da perfeição quanto mais simplesmente reagimos ao encontro com outros corpos. Aproximar-se da perfeição não significa seguir as regras exógenas, mas compreendê-las e agir a partir de si, pela razão. Cooperação, respeito mútuo, afetividade se sobreporão como efeitos num ambiente que estimule a autonomia. Orgulho (de ser amazonense, olha só!), Medo, Egoísmo serão a tônica dos que forem criados num ambiente heteronômico.
O GUIDÃO DO GOVERNO ORGULHOSO DO AMAZONAS
Público e particular são produções humanas em coletividade. Não são noções inatas, mas aprendidas. Um ambiente ou objeto é tão público quanto são capazes de compreender-se para além de si mesmos e terem desenvolvido o senso de autonomia seus usuários.
Os recursos públicos não o são apenas pela força da palavra. Fato é que a corrupção é uma das expressões de uma sociedade reativa e fixada no estágio heteronômico. E o que dizer da corrupção do espaço público num parque?
Ora, se um governo acha necessário que haja uma força coercitiva externa para “ordenar” o espaço do parque, a fim de estabelecer pré-definições espaciais normativas (cada qual com seu cada qual), é porque suas produções são ao mesmo tempo definidas e expressas pela heteronomia. Um governo sequelado e fixado a um estágio inferior do desenvolvimento moral e intelectual. E que subestima a capacidade de seus habitantes.
Não por acaso, enquanto os seguranças (que estão apenas cumprindo seu dever – ordem exógena) cuidam de colocar as coisas em ordem entre ciclistas e pedestres, na rua ao lado, motoristas andam na contramão, param na faixa, atravessam sinal fechado, estacionam na calçada, dão retorno onde é proibido, dentre outras irregularidades. Sinal da patologia normativa-paranóide de um governo que não consegue controlar o próprio guidão de seus atos.
Daí este governo, através das suas instâncias constitutivas, reproduzirem uma ambiência heteronormativa, seja dentro da sala de aula, seja na relação com os professores, seja no trato com a res publica, seja na incapacidade de acreditar que o seu povo é capaz de se organizar e usar soberanamente o espaço de uma praça, sem violência e sem necessidade de controle policialesco.
Talvez por isso, tomado nesta ambiência de retardamento intelectual e moral, o governo tenha eleito o Orgulho como mote e lema. Pelo menos nisso, eles estão certos!
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