Se o Estado constitui-se no corpo de suas leis – as normas para a produção de condições de coexistência entre as pessoas, com garantia das suas necessidades básicas e as que surgirão a partir de então – então, o chamado poder legislativo deve funcionar como órgão pulsante de produções ético-estéticas corporificadas em leis que auxiliem na construção do Bem Comum – elementos corporais e incorporais que aumentam a potência de agir dos habitantes e que sejam ao mesmo tempo, produtivos e distributivos de suas benesses.
Entende-se daí que, sem esta atuação democrática, uma cidade cujo legislativo não preceitua a sua função, tanto escamoteia a palavra legislativo quanto a própria palavra cidade. Ambas, neste caso, são esvaziadas de sentido.
Em Manaus, a Câmara Municipal, ao final do primeiro ano da 15a legislatura, mostra, pela sua “produção”, que não vê a cidade para além de si, e que está a anos-luz de uma compreensão democrática, e que, esvaziada, presta-se apenas à elucubrações teratológicas.
Seu presidente, o vereador Luiz Alberto Carijó (PTB), ex-prefeito tampão de Manaus, quando da saída de Alfredo para o Ministério dos Transportes, é defensor ferrenho da gestão sub judice de Amazonino Mendes. Sob sua gestão, a câmara tem sido – se é que é possível – mais subalterna aos interesses do executivo municipal do que as legislaturas anteriores. Carijó foi um dos artífices da votação do orçamento municipal, em tempo recorde e sem emendas, num episódio tão bisonho que houve vereador votando contra sua própria emenda. Ele é ainda responsável, junto com seu colegal, Homero de Miranda Leão (PHS), pela proposta de concessão da Medalha de Ouro Cidade de Manaus ao truculento secretário municipal, Américo Gorayeb. Em se tratando de homenagem, eles se equivalem.
O corregedor da casa, vereador Gilmar Nascimento (PSB), viajou, supostamente para fazer exames médicos, de acordo com a imprensa domesticada local, com despesas pagas pela câmara. Em Manaus, deixou trancadas toda e qualquer possibilidade de pedido de impeachment do vice-prefeito, Carlos Souza, envolvido com o crime organizado, e de cassação do vereador Fausto Souza, irmão de Carlos, sob quem pairam as mesmas acusações. Em tempo: Gilmar não padece de nenhum mal e nem necessita de nenhum exame que não possa ser feito na rede pública municipal de saúde. Foi apenas fazer check-up.
No final de outubro, o Plano Diretor da cidade foi outra mostra da inexistência da câmara de Manaus como parlamento e como função legislativa. Feito sem que tenha ocorrido sequer uma audiência pública, o PD foi questionado pelo Ministério Público do Estado, na figura do procurador Paulo Stélio. Ao final, algumas audiências na “casa do povo” (sem povo) foram o suficiente para aprovar o conjunto de ações que beneficiam menos a população que o empresariado local.
Em outro assunto, a CMM também mostrou seu posicionamento antidemocrático. Quando o assunto foi retirar dos estudantes o direito à meia-passagem, os vereadores da situação foram implacáveis, e agiram céleres na defesa dos interesses do Sinetram, com direito a suspeita de fraude na votação e embargos na justiça. Nem a movimentação intensiva dos estudantes, que mostraram a imobilidade de uma cidade sem Executivo e Legislativo foi suficiente, e as longas filas para compra de passe-estudantil, com restrições nunca vistas na era da meia-passagem, surgiram.
O uso dos cartões corporativos para atividades “extra-parlamentares” foi também assunto em 2009, para alegria das churrascarias rodízio e dos médicos cardiologistas de São Paulo. Leonel Feitosa, campeão da atuação gastro, chegou a afirmar que é direito dos bem nascidos comer às custas da população em locais que ele classifica como bons restaurantes. O mais recente flagrado na prática da gulodice foi o vereador Dr. Modesto, que modestamente gastou pouco mais de 300 reais em uma cachaçaria.
Recentemente, uma mensagem do executivo municipal – leia-se, do prefeito sub judice, Amazonino Mendes – fez com que a celeridade da CMM fosse novamente despertada. Celeridade extensiva e fisiológica, que no entanto, é antinatural, na medida em que age contra os princípios democráticos da casa. A assessoria do prefeito foi tão rápida em elabora o projeto da Taxa do Lixo que esqueceu-se de apagar as referências à prefeitura de São Paulo. Se aprovada tal como foi enviada à CMM, a responsabilidade pela fiscalização e penalidades em Manaus, segundo o texto, será da secretaria paulista de limpeza pública. Contra esta lei, até mesmo a imprensa domesticada e empresas de propaganda visceralmente ligadas à gestão Amazonino, chiaram.
A mesma celeridade não se vê quando o assunto é fazer cumprir determinação do TSE, que cassou o mandato do vereador Henrique Oliveira. O edil cassado continua recebendo seus vencimentos e atuando entre os iguais, na CMM, com a conivência da mesa diretora, e uma ajudinha do TRE/AM.
Individualmente, os vereadores se destacam também por projetos esdrúxulos, que são nascidos de entendimentos equivocados sobre as matérias sobre as quais versam.
O vereador Roberto Sabino (PRTB) criou um projeto de lei de filtragem de conteúdos para os laboratórios de informática da rede pública e privada de ensino. De acordo com o projeto, “o acesso a sites que divulguem ou façam apologia ao uso de drogas, à pornografia, à pedofilia, à violência, aos armamentos e a qualquer tipo de preconceito, além de outros que possam interferir no desenvolvimento sadio dos alunos”, está proibido. O que o vereador não sabe é que uma educação que se dê pela via da privação impede o desenvolvimento da capacidade de discernimento, e que, na educação, qualquer produção humana é cultura, portanto, passível de transformação e produção de cidania, ainda que essa produção seja a negação do conteúdo inicial. Pergunta-se: o site da CMM passará pelo filtro internético das escolas, sempre apto a defender a sanidade das crianças?
O vereador Paulo Nasser (PSC) elaborou um projeto para que o poder público arque com a despesa de “uniformizar” os pacientes dos hospitais públicos. Objetivo de ordem terepêutico inócuo, já que os maiores vetores de agentes bacteriológicos dentro dos hospitais são as roupas dos acompanhantes e os jalecos de médicos, enfermeiros e estagiários que são usados fora do ambiente hospitalar. Uma despesa no mínimo questionável para um sistema de saúde já com carência de recursos.
É também do vereador Paulo Nasser a lei que regulamenta a quantidade máxima de passageiros em coletivos na cidade de Manaus. Outra lei de força inócua em uma cidade onde o transporte coletivo é controlado pelos empresários, pelo prefeito vitalício de Manaus, Acyr Gurgacz, e conta com a conivência e omissão dos órgãos municipais.
O debutante vereador Reizo Castelo Branco (PTB), depois de ameaçar a relatoria do projeto que regulamentaria a atividade dos mototaxistas na cidade, fechou o seu primeiro ano como parlamentar com as importantíssimas leis que instituem o dia do Profissional de Segurança Privada, e do Médico Veterinário.
E o ano de 2010 vem aí, com eleições, e muitos vereadores de hoje sonham com a Assembléia Legislativa do Estado amanhã. Mas não creia o leitor que esta breve retrospectiva da atuação parlamentar manauense esteja encerrada sob o número 2009. Ele há de lembrar que em 2008, a CMM só deixou de exercer a função política dos ademocratas (preparar armadilhas para o povo) no raiar do reveillón.