O Instituto Humanitas Unisinos entrevista a filósofa francesa Judith Revel, que fala sobre as transformações do capitalismo, o mundo do trabalho e a transformação da representação política. Parte 2 de 2. A primeira parte você confere aqui.
A passagem do capitalismo material ao imaterial cognitivo e a crise da representação política. Entrevista especial com Judith Revel
PARTE II
IHU On-Line – Segundo Foucault, nossa subjetividade nunca cessa de se inventar. Que limitações nossa subjetividade e autonomia encontram quando confrontadas com a alteridade, o Outro?
Judith Revel – Penso que a questão do Outro é uma questão errada. Ela foi importante na questão filosófica francesa nos anos 50 e, provavelmente, já antes da guerra. O Outro é pensado, ao mesmo tempo, como meu próprio vis-à-vis, como o objetivo que é preciso que eu alcance.
Tenho tendência a pensar que para Foucault, a relação consigo mesmo, a relação com o Outro, é pensada de maneira diferente e, ao mesmo tempo, não é uma ciência de natureza. Pois, finalmente, quem sou eu?
Sou sempre o Outro de mim mesmo. Não sou alguém, no sentido a quem se poderia se dizer algo. Poderia descrever meu estado estável de processo. Eu sou o processo, o porvir. Então, sou algo hoje que não serei mais amanhã, quando serei diferente. Terei vontade de ser diferente. A relação comigo mesma é uma relação não de alteridade, pois para dizer Outro é preciso sempre a estrutura do mesmo e do Outro; o Outro como o outro do mesmo. A expressão do círculo elíptico. Penso que a relação consigo mesmo, para Foucault, é sempre de diferencial. Não se trata de falar do Outro, de alteridade, mas sim de ser diferente. Sobre isto, penso que Jacques Derrida tinha uma grande definição desde os anos 60. Como se faz para não se definir como uma identidade, uma substância, uma entidade, sabendo-se mesmo que se vai tornar um diferencial? Que se vai ficar diferente de si mesmo? Quer dizer, na subvenção do movimento de uma evolução.
Então, se digo isso de mim mesma, sou obrigada a dizer que a relação que tenho com o Outro é diferente disto. O Outro é aquele que não sou eu. E eu quem sou? O Outro é aquele que não sou eu e, ao mesmo tempo, posso descobrir, em função das circunstâncias, de situações, de comprometimento, extremamente fortes. Dou-lhe um exemplo: em novembro de 2005, ocorreu na França a revolta dos subúrbios. Logo em seguida, houve um movimento de estudantes em março ou abril de 2006. Alunos de subúrbios se uniram a estudantes da Universidade Sorbonne de Paris. O que eles tinham em comum? Nada. Os estudantes da Sorbonne de Paris são, na maioria, não todos, alunos loiros de famílias da pequena, média e grande economia parisiense. Os alunos de subúrbio têm muito pouco acesso à universidade. Entretanto, ambos diziam: “Nossa vida é roubada”. Claro que há uma diferença entre ambos, mas isso não separava as pessoas. Ela os unia na busca de um comum pelo qual era preciso lutar. Penso que isso é algo que representa o pensamento da relação com o Outro. É finalmente isso a subjetivação da qual fala Foucault.
IHU On-Line – Como podemos compreender a dinâmica da subjetividade que construímos constantemente, ao lado dos condicionantes aos quais somos forçados a aceitar?
Judith Revel – É preciso sair da lógica do “tudo ou nada”. Somos forçados a aceitar as obrigações somente porque não há exterioridade. O poder se dá através das relações afetivas, entre familiares, entre pais e filhos, de sentimento de afeto, de amor entre um homem e uma mulher, de saberes entre um aluno e seu mestre. Há relações de poder em tudo, com vários rostos. Então, dizendo isto, não é mais possível pensar na resistência ao poder, ou seja, na subjetivação. É impossível pensar na subjetivação que está externa ao poder. Se estamos sempre “no interior das redes do poder”, para usar uma expressão de Foucault, somos obrigados a aceitar que esta relação de poder passa através do Outro.
Mas não somos sempre submetidos a isso, pois somos simultaneamente atores ou submissos ao poder. A única coisa que se pode fazer é – aí que a resistência e a subjetivação tomam força – torcer, no próprio interior desta relação de poder, a maneira na qual ele se exprime. Devemos dobrar, contornar, afastar, trabalhar internamente todos os dispositivos que nos atravessam e que nos fazem também ser o que somos. A única possibilidade de subjetivação está no próprio interior das relações que nos atravessam para chegar a impor um distanciamento. Mas o que é este distanciamento? Aí está toda a questão. Foucault responde simplesmente que o distanciamento é que a subjetivação é capaz de fazer algo que o poder não é capaz de fazer. O poder age sobre a ação dos homens, e lembro uma frase também de Foucault: “O poder é um modo de ação sobre a ação dos homens”. Enquanto isso, a resistência não faz nada além de agir. Ela não é somente reativa. A resistência produz, cria, inventa. Quando se fala de subjetivação, se fala de uma produção de subjetividade. Ou seja, de uma invenção de subjetividade. Construo-me de maneira inédita. E isto o poder não é capaz de fazer. O próprio sentido do poder é reativo, gestor, mas não criativo. É nesse descompasso, finalmente, que o problema do comprometimento ou o problema da obrigação desaparece. Certamente existe obrigação.
IHU On-Line – De que forma a urgência de liberdade que animava as manifestações de Maio de 68 continua uma demanda atual?
Judith Revel – Dizer que maio de 68 ainda é atual não quer dizer que o que acontece hoje é maio de 68. Nesse período, aconteceu uma revolução, que interveio em um contexto no qual a economia era frutífera. A França vivia os trinta anos gloriosos. O desemprego praticamente não existia, era de 4%. A vontade de revolta era política e cultural radical. Era a vontade de “tomar a palavra”.
Limitações pós-68
Hoje, o que acontece em relação a maio de 68, é ignorado. É ignorado que, na França, o desemprego está em 10%; para os jovens de subúrbio, ele é de 30%. O contexto econômico e social é totalmente diferente. Mas há também pontos em comum que, apesar de não permitirem dizer que 2008 e 68 são a mesma coisa, ajudam a entender que 2008 é um tipo de eco, a distância, do que 68 permitiu. Os pontos em comum entre os períodos são uma definição aberta da história, ontológica e não dialética na qual o homem pode intervir e construir a história, fazê-la e construí-la. Uma nova definição da subjetividade ou da subjetividade coletiva que emerge é fundamentalmente nova em relação a uma gramática biopolítica que foi a da modernidade. Há também a questão dos modos de ação, que são totalmente diferentes e não passam necessariamente pelos critérios da representação política, tais como o pensamento político moderno nos havia ensinado. Neste sentido sim, 2008 é o filho de 68.
IHU On-Line – Em entrevista à nossa revista, em 2006, a senhora disse acreditar no poder ontológico dos seres humanos. Que aspectos destacaria nesse sentido, como conquistas/progressos que o ser humano realizou para "se melhorar"?
Judith Revel – A ideia de melhora é complexa, pois foi muito tempo associada ao progresso científico e tecnológico. Não faço parte do grupo de pessoas que demonizam esse progresso.
Existe hoje um discurso importante de “decrescimento” usado na esquerda, na extrema esquerda, no qual seria o caso de sair deste ciclo econômico para voltar a algo que seria anterior. Não se volta nunca atrás, e também não se pode dizer a alguém que não tem nada que está tudo bem assim e que o consumo é algo horrível. As pessoas que não têm nada têm vontade de conseguir as coisas que possuímos. Por isso, é extremamente difícil construir um modelo ou de sair do consumo mesmo se a grande maioria da humanidade não tem acesso a esse consumo.
A contradição está na desigualdade e não no consumo. Então, o que se entende por melhora da condição humana? Entende-se, é claro, um acesso geral, generalizado de todos a esse bem-estar. Quando digo bem-estar, não quero dizer acumular roupas em um armário, e sim saúde, educação, cultura, gosto, felicidade.
Direitos à vida e não à sobrevivência
Penso que o conceito de felicidade é algo que não se deve considerar levianamente. Concretamente, quer dizer o quê? Quando conversamos com pessoas que não têm documentos, com imigrantes, com sujeitos que estão abaixo do limite da pobreza, elas dizem: “Gostaríamos de comer, de beber, pois não temos o que comer nem o que beber. Gostaríamos de ter tratamentos, de ter escolas.” Elas dizem também: “Gostaríamos de ver coisas belas, de ir a cidades, de ver o mar, de ver quadros, escutar músicas, de poder nos reunir, de nos apaixonar etc.”. Para mim, a melhora da vida humana, hoje, traz esses elementos. Ou seja, dizer o que é um direito inalienável para os homens e para as mulheres. Quando me refiro a direito inalienável, lembro que seria preciso reescrever hoje a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual acabamos de festejar o aniversário. Penso que é preciso começar na ordem das coisas, ou seja, eliminar as desigualdades mais explícitas e reivindicar estes diretos inalienáveis. Quando obtivermos isso, poderemos dizer que a resistência é possível. Tornar possível a resistência é um direito.
IHU On-Line – Considerando a dinâmica da internet e as novas formas de produção e reprodução dos conteúdos, qual a relevância de discutir o direito autoral?
Judith Revel – Os direitos autorais são fundamentais, pois permitem reafirmar um setor novo, extremamente valorizado do ponto de vista econômico, ou seja, produzem enormemente valores econômicos. Permitem impor, neste novo setor, uma ideia muito antiga, a da propriedade. Se refletirmos sobre a ideia da propriedade, seja um bem intelectual ou material, pouco importa. O que é surpreendente, e extremamente banal, mas sobre o que se pensa muito pouco, é que não sou proprietária de algo.
Minha propriedade é a expropriação de todos os outros. Uma coisa é minha porque não é de outra pessoa. Esta é a ideia da propriedade. Então, não se pode pensar nisso sem uma ideia de expropriação. Penso que é também uma maneira de limitar os homens e “para bem vir é preciso dividir”, como diz o velho adágio. Então, o que se pode fazer diante desta ideia de propriedade? Pode-se, é claro suprimi-la totalmente. Mas pode-se fazer algo mais interessante, pois, historicamente, o contexto tentou suprimir a propriedade privada. Penso, por exemplo, no modelo soviético. Independentemente do julgamento moral, o regime soviético não funcionou porque se transferiu a propriedade privada para a propriedade do Estado.
Ora, a propriedade do Estado é o quê? É tudo o que pertence a ele, pois não pertence a mais ninguém. É exatamente como a propriedade privada. Salvo que o proprietário é um só: o Estado. Da propriedade classicamente privada, somente um era o proprietário; os outros não tinham nada. Da propriedade do Estado, ninguém é proprietário, pois ela é do Estado. Você me dirá: “Sim, mas o Estado somos nós”. Mas, infelizmente, não é assim que funciona. É daí que nasce o problema. Antonio Negri e Michael Hardt tentam pensar uma outra categoria que não seja nem privada nem pública, mas intermediária, que poderia ser interessante para repensar a propriedade. É a categoria do comum, sendo este aquilo que é de todos.
É uma categoria difícil, pois não pertence à modernidade e é, me parece, o que a dimensão imaterial do conhecimento e a internet começaram a experimentar. Penso em toda esta troca, este compartilhar de conhecimentos que acontece através da internet. Tudo isso configura um grande desafio, pois nos permitirá, para além do imaterial, repensar também a propriedade material, ou seja, repensar o bem comum. O bem comum é literalmente o “common good”. “Common good” é o titulo do livro de Antonio Negri e de Michael Hardt que será lançado no ano que vem e, que espero, nos ensinará muitas coisas.
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Judith Revel é filósofa e leciona na Universidade de Paris, Panteon-Sorbonne. Especialista no pensamento francês contemporâneo e particularmente em Michael Foucault, sobre o qual dirigiu a edição italiana dos Ditos e Escritos (Feltrinelli, 1996-1998), prepara um livro sobre a genealogia do conceito de diferença na França após 1945. Sua última obra publicada é Michel Foucault: Expériences de la pensée [Experiências do pensamento]. Paris: Bordas, 2005. É membro da redação da revista italiana Posse, e participa também da revista Multitudes. A filósofa esteve recentemente no Brasil palestrando no III Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação: "Foucault, 80 anos", ocorrido de 9 a 11-10-2006 no Rio de Janeiro.
A íntegra da entrevista pode ser lida aqui.