LITERAMUNDO enuncia: A Filósofa Judith Revel, desnudando o capitalismo

O Instituto Humanitas Unisinos entrevista a filósofa francesa Judith Revel, que fala sobre as transformações do capitalismo, o mundo do trabalho e a transformação da representação política. Parte 1 de 2.

A passagem do capitalismo material ao imaterial cognitivo e a crise da representação política. Entrevista especial com Judith Revel

Relembrando os acontecimentos de maio de 68, a filósofa francesa Judith Revel  lamenta a atual conjuntura de seu país e diz que o mundo não carrega mais as heranças revolucionárias daquele período. Com a crise internacional, aponta, “vemos uma França que não tem mais as certezas que podia ter, mesmo quando se pensava que nela havia, apesar de tudo, algo como welfare, como um Estado de providência”. “Hoje, assiste-se na Europa, mas não somente nela, a uma verdadeira crise da representação política”, diz Judith Revel à IHU On-Line. Ela ainda acrescenta: “O conceito de representação política, fundamental na constituição do pensamento político moderno, não funciona mais enquanto tal”.

Visto como um país cumpridor de suas obrigações perante os cidadãos, a França vive um novo momento, mais sombrio, onde mais da metade da população teme ficar desabrigada. “A França foi, por muito tempo, o país do direito do trabalho, da proteção social, foi, por muito tempo, o país onde os seguros-desemprego, os seguros familiares, os seguros de saúde, a previdência social, os hospitais, as escolas, as universidades funcionavam gratuitamente e para todos. Hoje, isto está se tornando cada vez menos verdade”, compara.

Para aqueles que não acreditam na democracia ou perderam as esperanças de viver em um mundo melhor, igualitário e justo, a filósofa tem um recado: a democracia não é “algo que se deva rejeitar”, e continua: “é preciso sem dúvida rearticular, ou em todo caso, repensar, redefinir uma maneira de organizar a democracia que seja diferente”.

Na ampla entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, quando esteve no Brasil participando do “Fórum Livre do Direito Autoral – O Domínio do Comum”, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Judith Revel também analisa as mudanças da subjetividade humana e as relações de poder existentes entre os indivíduos. “Não sentimos mais as coisas da mesma maneira, não vivemos mais o tempo do mesmo jeito, não pensamos mais a história do mesmo modo. Mas também não pensamos o poder, a luta e o conflito da mesma maneira. Isto é uma abertura de visão que considero surpreendente”, considera.

Judith Revel é filósofa e leciona na Universidade de Paris, Panteon-Sorbonne. É especialista no pensamento francês contemporâneo, particularmente em Michel Foucault. Entre suas obras, citamos Michel Foucault: Expériences de la pensée (Paris: Bordas, 2005). É membro da redação da revista italiana Posse, e participa também da revista Multitudes.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senhora descreve e qual sua avaliação sobre a atual conjuntura política e econômica francesa?

Judith Revel – A chegada de Nicolas Sarkozy ao poder representou uma ruptura. Finalmente, ele utilizou-se e rompeu com um modelo que era o de De Gaulle. Quando se pensa no gaulismo na França, fala-se de uma direita bem pouco liberal que continua, apesar de tudo, relativamente social.

Com Sarkozy, o que impressionou muito os franceses foi a negação em relação às suas posições que construíram a direita francesa, a vontade de se alinhar com uma posição americana, e também de construir ou de reconstruir um discurso de direita sobre um discurso hiperliberal. Este é um primeiro ponto.

O segundo aspecto importante – importante porque se veem os efeitos que há na crise atual na França –, é que o atual presidente francês procurou manter um discurso muito pró-europeu. E, ao mesmo tempo, ele se referiu permanentemente à grandeza da nação no bom momento em que a globalização torna difícil, senão impossível, o retorno a diferenças nacionais, independentes. Então, se trataria de preservar a autonomia ou de proteger a integridade? O protecionismo francês de Sarkozy funciona sem nenhuma contradição, enquanto é contraditório como um discurso pró-europeu. Ele ganhou há um ano e meio, recuperando claramente uma parte pequena, mas importante, do discurso de extrema direita, referindo-se ao discurso da imigração.

Medo assombra franceses

Hoje, no próprio momento em que a crise explodiu, penso que vemos uma França que não tem mais as certezas que podia ter, mesmo quando se pensava que nela havia, apesar de tudo, algo como welfare, como um Estado de providência. A França foi, por muito tempo, o país do direito do trabalho, da proteção social, o país onde os seguros-desemprego, os seguros familiares, os seguros de saúde, a previdência social, os hospitais, as escolas, as universidades funcionavam gratuitamente e para todos. Hoje, isto está se tornando cada vez menos verdade. Por vezes, já é completamente falso. E esta regressão, este tipo de reverso do antigo welfare francês, é acompanhada por uma violência nas intervenções sociais. O desemprego técnico, a diminuição de cargos, a redução das garantias dos direitos do trabalho, as dificuldades de acesso aos hospitais e a não gratuidade de certos medicamentos formam uma paisagem nova para os franceses.

Todos os anos, o Jornal de Domingo, um telejornal nacional, realiza uma pesquisa com os franceses. Ele pergunta: “Qual é o seu maior medo?”. Este ano, como no ano passado, mais de 50% dos franceses responderam: “Nosso maior medo é de nos encontrarmos na rua”. Ou seja, sem casa. O que quer dizer que, para a maioria dos franceses, a possibilidade de encontrar-se sem teto não é inverossímil. Inversamente, se analisarmos todos os Sem Domicílio Fixo (SDF) que vivem na rua em Paris, 29%, ou seja, um terço, dessas pessoas não têm casa, apenas um contrato regular. Então, reduziu-se a vida na França. Há condições de sobrevivência e não mais de vida. Não falo dos franceses que têm, apesar de tudo, direitos, nem dos imigrantes ou de imigrantes clandestinos, para os quais a vida não é nem mesmo da ordem da sobrevivência. Falo, isto sim, do pesadelo.

IHU On-Line – Pode traçar um panorama do pensamento filosófico e social da França das últimas décadas?

Judith Revel – Não, um panorama é extremamente difícil. O que posso dizer é 1968 correspondeu, para a França como para inúmeros países da Europa e fora dela, uma ruptura muito forte. Esta ruptura na França consistiu em três coisas. A primeira é a hipótese de que não havia fatalidade histórica, que não havia concepção dialética da história que nos fechasse em algo que já estava determinado e escrito antes mesmo de nossa ação. Havia, sim, para os homens, a possibilidade de construir sua história, e esta possibilidade incluía escolhas que se podia assumir e gerir de maneira voluntária e também cheia de esperança.

A segunda é que os sujeitos desta história não eram os que se esperavam. Se pensarmos do ponto de vista social e político, não francês, mas mundial, a defesa dos oprimidos, desde o século XIX, se faz seguidamente, não sempre, com referências a Marx. Lembro, por exemplo, de um certo pensamento francês, pós-estruturalista, de Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida, ou, mais próximo de mim, de Jacques Rancière. Todo este pensamento francês que gira em torno de 68, ou um pouco antes de 68, e continua bem além, fez a hipótese dos sujeitos da mudança, da transição, da revolução, da ruptura. Estes sujeitos, que foram pensados pelo marxismo ortodoxo como já constituídos como os proletários, podiam ter rostos diferentes. Operários e imigrantes estavam juntos no mesmo combate, e formaram um sujeito unitário de mudança. O fato de que a subjetividade política, coletiva, emerge, de maneira nova, na segunda metade do século XIX, não corresponde mais às estruturas de ação coletiva que se conheceu no século XIX. No entanto, outra coisa que emerge e cuja criatividade, a capacidade de inventar uma modalidade de ação, é absolutamente inovadora. Esta ideia, fundamental, ainda hoje nos habita, se pensarmos, por exemplo, no que está acontecendo na Grécia. Lá não existem “quebradores”, mas sim anarquistas e não-anarquistas, estudantes e alunos, pesquisadores e pais de alunos. São pessoas que em protesto saem às ruas e dizem palavras como: “Também sou proletário, também faço parte da geração que ganha 600 euros por mês”. O que nos países europeus, e também na Grécia, é absolutamente insuficiente para viver, quando se pensa no custo de vida na Europa. Esta subjetividade é grande, forte e poderosa, e age.

A terceira ideia herdada de 68, ainda muito forte hoje – em todo o caso, seria preciso recomeçar a pensar nela –, é que as modalidades de ação política não tomam sempre o formato constituído pelo pensamento político e da filosofia política da modernidade. Hoje, assiste-se na Europa, mas não somente nela, a uma verdadeira crise da representação política. O conceito de representação política foi fundamental no pensamento político moderno, pois permitiu pensar no funcionamento da democracia a partir do século XVIII. Hoje, cada vez mais existem situações nas quais se tem a impressão de que a representação política não funciona mais enquanto tal. O que não quer dizer que a democracia é algo que se deva rejeitar, ou que é uma coisa ruim. Mas, sim, de que é preciso sem dúvida rearticular, ou, em todo caso, repensar, redefinir uma maneira de organizar a democracia que seja diferente. Um exemplo: em 2002, nas eleições presidenciais francesas, entre um candidato de extrema direita racista, Jean-Marie Le Pen e o candidato de direita, Jacques Chirac, todo o país votou em Chirac, contra a extrema direita. O que quer dizer que ele foi eleito com 82% dos votos. Quando se pensa nesse total, trata-se de um voto mascarado, e não em um voto democrático. 82% não representa a vontade política das pessoas. É simplesmente a vontade de colocar um obstáculo para algo que é um perigo. Ninguém queria essa popularidade para Chirac, mas muitas pessoas – das quais faço parte – votaram nele, e não queriam que ele fosse eleito presidente. Mas fomos obrigados a fazê-lo. Este é um exemplo clássico de que a representação tem limites. Há também as pessoas que não podem votar. Todos os estrangeiros que contribuem para a economia francesa, que trabalham no país, que pagam impostos, não têm direito ao voto. Então, o que é reinventar a democracia neste contexto? Penso que é provavelmente a questão que está no cruzamento da herança do pensamento filosófico e político francês desde 1968. É uma questão a qual é preciso absolutamente começar a refletir, e tentar responder hoje.

IHU On-Line – Que transformações a senhora percebe no homem pós-moderno, ao assumir sua subjetividade? O que nos tornamos hoje, a partir do momento em que assumimos a nossa subjetividade?

Judith Revel – A situação é complexa, pois é, ao mesmo tempo, mais difícil e aberta. É evidente que a passagem a um paradigma de trabalho, de luta em prol da produção de bens materiais em série ou a produção do valor econômico, no sistema capitalista se faz a partir da economia material, e os partidos trabalhadores não têm muito que fazer a respeito. Pensa-se mesmo em afastá-los.

A passagem do capitalismo material ao imaterial cognitivo permitiu às pessoas que trabalham hoje, inclusive nas estruturas de trabalho imaterial, fazerem valer ou reintegrar a subjetividade no processo de valorização. Quando se recruta alguém para um trabalho, inclusive em países de economia desenvolvida, avançada, pede-se para ter conhecimentos ou uma experiência, de ter uma história e de colocar em sua produção toda esta vida que é a sua. A produção tornou-se biopolítica. Ela é obrigada a interagir com a subjetividade dos homens e das mulheres. Então, isso é uma abertura. Pode-se ver também o contrário. Quer dizer, finalmente, neste tipo de integração à subjetividade ao processo de valorização, ao processo de produção do valor, insiste-se em um tipo de extorsão que é extremamente forte, do poder da economia capitalista sobre os homens. Quer dizer que o poder, desde então, “comeu” a vida dos homens de tal forma que o tempo de trabalho é o tempo de toda a sua vida. Mesmo quando não trabalham, estão em casa, sonham, leem, assistem televisão, e quando amam. Então, as duas percepções são, ao mesmo tempo, uma extorsão do poder e uma sorte formidável.

Economia material x imaterial

No passado, quando estávamos em um tipo de economia material, a única coisa que o trabalhador podia fazer, quando explorado e roubado em sua própria produção, era quebrar os instrumentos de trabalho, pois as ferramentas e as máquinas não pertenciam a ele. Era preciso, então, interromper a cadeia de montagem, fazendo uma greve. Hoje, é bem mais simples. Não temos mais somente máquinas diante de nós. A máquina principal na produção econômica é o cérebro. Se quero denunciar um tipo de exploração do qual sou objeto, posso partir com meu cérebro. A máquina não pertence mais ao patrão. A máquina produtiva é meu cérebro: ele é meu, e isso é minha subjetividade. Então, penso que a relação de força está extraordinariamente reequilibrada por esta integração da subjetividade no processo econômico. Ela é minha, e o capital precisa dela.

Ao mesmo tempo, o capital investe em minha vida, o que é um problema. Penso que as duas coisas marcam ou definem uma condição que é nova. Não sei se é a condição do pós-moderno, mas é evidente que produz mudanças extremamente finas, inclusive no que se refere ao modo de vida. Penso que são realmente mudanças antropológicas que compõem a nova antropologia do homem pós-moderno a ser definido. Não sentimos mais as coisas da mesma maneira, não vivemos mais o tempo do mesmo jeito e não pensamos mais a história do mesmo modo. Mas também não pensamos o poder, a luta e o conflito da mesma maneira. Isto é uma abertura de visão que considero surpreendente.

(Continua…)

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